“Nossa, como são lindas as diferenças entre as cores! Agora consigo enxergar coisas belas no mundo. Antes, tudo o que via era feio. Mudaram as lentes dos meus olhos.” Em quatro frases, a americana Sarah, de 36 anos, resume o que é viver com e sem depressão, doença que atinge 300 milhões de pessoas no mundo, 16 milhões delas no Brasil. Sarah, que prefere não ter o sobrenome divulgado, é a primeira pessoa do planeta tratada com uma técnica capaz de fazer desaparecer sintomas graves pouco depois de aplicada. É quase como se a dor fosse arrancada com as mãos, como diz a expressão. Ela sai da mente por meio da modulação da atividade elétrica em partes do cérebro associadas à enfermidade (veja no quadro abaixo). Melhor ainda, a beleza do método que beneficiou a americana não se restringe ao alívio imediato do sofrimento emocional. Ele foi desenhado para atuar de acordo com cada paciente. Isso porque, sabe-se hoje, assim como há peculiaridades biológicas que distinguem um paciente com câncer de outro, existem diferenças nos padrões elétricos cerebrais entre indivíduos com depressão.
O caminho para que a medicina chegasse à técnica tão eficaz e precisa é longo. Por milênios, a depressão devastou vidas humanas sem que fossem compreendidos os mecanismos físicos e ambientais envolvidos no seu desencadeamento. No conhecido tratado The Anatomy of Melancholy, publicado em 1621, o autor, escritor e clérigo inglês Robert Burton define o que chama de estado de tristeza permanente como uma enfermidade inata ao ser humano. Burton acertou ao descrever algumas manifestações da doença, mas errou ao dizer que ela seria um atributo de nascença de homens e mulheres. A depressão, na verdade, é resultado de um conjunto de fatores que pode incluir predisposição genética, ambiente, momento de vida. Do ponto de vista fisiológico, é caracterizada pelo desequilíbrio na disponibilidade de substâncias responsáveis pela comunicação entre os neurônios e por alterações nos modelos de funcionamento elétrico do cérebro. O nó químico que travava o sistema neurológico começou a ser resolvido quando o Prozac chegou ao mercado, em 1988, abrindo a porta para dezenas de outras medicações que reequilibram a concentração dos compostos cujo desbalanço contribui para a manifestação dos sintomas.
A estratégia para alinhar as ondas elétricas do cérebro começa a ser refinada agora — e o tratamento que tirou a americana Sarah do fundo de um poço que ela achava não ter saída é a representação do máximo a que chegou essa evolução até o momento. Existem três técnicas com essa finalidade. A primeira é a eletroconvulsoterapia, conhecida como eletrochoque. Bastante estigmatizada em razão de seu uso muitas vezes de forma cruel — em tortura, inclusive — o método ficou esquecido durante muito tempo, mas voltou a ser adotado em casos de depressão severa sem resposta aos remédios. Só que desta vez com anestesia obrigatória e devendo, sempre, ser realizada por serviços de psiquiatria reconhecidos e respeitados. Na década de 1980, surgiu outro recurso, a estimulação cerebral profunda. Trata-se do implante de eletrodos em áreas do cérebro associadas a doenças. Sua utilização mais conhecida é no tratamento da epilepsia, marcada pelo descompasso repentino dos impulsos elétricos. Em 2008, o Food and Drug Administration, agência americana responsável pela liberação de medicamentos e terapias, aprovou a utilização, contra a depressão, da terceira ferramenta. A estimulação magnética transcraniana (EMT) usa a força do campo magnético (emitido por bobinas posicionadas proximamente às regiões do cérebro que se quer tratar) para promover mudanças nos padrões elétricos. No Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, está sendo realizada uma pesquisa para avaliar seus benefícios no tratamento da depressão em idosos, faixa etária na qual é notificada a mais alta taxa de suicídio no Brasil. Segundo dados de 2019 do Ministério da Saúde, o índice entre eles é de 7,8 por 100 000 habitantes por ano, o triplo do registrado na população em geral, de 6,6 por 100 000 habitantes por ano. A eficácia da EMT gira em torno de 50% a 60%, segundo o psiquiatra Leandro Valiengo, coordenador do Serviço Interdisciplinar de Neuromodulação do instituto. Há sessenta participantes, mas os médicos estão recrutando voluntários com mais de 60 anos porque desejam aumentar o número de participantes para 110 até 2023 (as inscrições podem ser feitas pelo e-mail pesquisa.neuropsiquiatria@gmail.com).
Sarah, a paciente americana, submeteu-se a um procedimento experimental que foi muito além em eficácia e precisão comparado aos três métodos. Como na estimulação cerebral profunda, ela passou pela implantação de eletrodo. A diferença, crucial, é que ela foi a primeira do mundo a ter os dispositivos colocados nos pontos que o seu cérebro precisava. “Sabemos que os padrões elétricos são distintos entre os pacientes”, disse a VEJA a psiquiatra Katherine Scangos, da Universidade da Califórnia, nos Estados Unidos, responsável pelo tratamento. “Criamos uma abordagem personalizada para Sarah.” O processo exigiu o mapeamento dos sinais elétricos trocados entre as células nervosas da paciente para identificar onde ocorriam as modificações elétricas sempre que ela tinha sintomas como pensamentos suicidas e a detecção de um lugar que, se estimulado, poderia mitigá-los. Feito isso, foram colocados dois eletrodos. O primeiro, na área onde a atividade elétrica se altera. O dispositivo monitora continuamente as ondas cerebrais, capta qualquer mudança e envia sinais para o segundo eletrodo de que há algo errado. Este imediatamente dispara impulsos elétricos, durante seis segundos, para restabelecer o ritmo adequado das ondas cerebrais. O mal é cortado pela raiz. A volta do equilíbrio nas transmissões elétricas simplesmente apaga pensamentos depressivos. De fato, o experimento é uma virada na forma de tratar a depressão grave resistente. “Ele aponta um paradigma desesperadamente necessário na psiquiatria”, diz Andrew Krystal, integrante do time de pesquisa. “Mostramos que a medicina personalizada tratou com sucesso uma paciente que havia tentado de tudo”, afirma. Sarah, de fato, fez inclusive eletroconvulsoterapia. Após o implante, ela experimentou emoções que havia esquecido, como a alegria de enxergar as cores do mundo. “Voltei a ter uma vida que vale a pena ser vivida”, diz. Sarah não tem sintomas há seis meses. Os médicos planejam reproduzir o resultado em pacientes que, como a americana até há pouco tempo, encontram-se presos na escuridão da depressão. Toda a sorte a eles.
Com reportagem de Simone Blanes
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2022, edição nº 2774