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Uma dose a mais: mulheres já se igualam aos homens no consumo de álcool

O fenômeno é observado no Brasil e no mundo — com enormes ganhos sociais e os mesmos eventuais problemas

Por Sabrina Brito Atualizado em 4 jun 2024, 13h35 - Publicado em 18 jun 2021, 06h00

Quando a indústria tabagista, no fim dos anos 1930, entrou pela porta dos fundos de Hollywood, pagando a atores para fumarem em cena, ela não fez distinção de gênero: se Gary Cooper recebia para fumar, Joan Crawford não ficava atrás. Já a indústria de bebidas alcoólicas pegou mais leve — os Estados Unidos mal tinham saído da Lei Seca (1920-1933) e, por isso, não era de bom-tom ver mulheres entornando o caneco nas telas — a não ser que fossem vinhos e espumantes. Assim, de Homer Simpson a Don Draper (o atormentado publicitário da série Mad Men), a sociedade foi doutrinada a ver homens de copo na mão enquanto as mulheres ficavam na retaguarda, consumindo menos e em menor grau — no caso, menor grau etílico. Relacionar mulheres ao álcool virou uma espécie de tabu, acompanhado de chavões como “são fracas para beber”, como se não houvesse homenzarrões soltando o verbo e perdendo o rumo de casa depois da terceira dose. Novas pesquisas, no entanto, mostram que o sexo feminino, para o bem e para o mal, derrubou paradigmas sem quebrar a garrafa: as mulheres estão se igualando aos homens no consumo de álcool e, em alguns casos, bebendo até mais.

O mais recente levantamento do IBGE revela que o consumo de álcool no Brasil está cada vez maior: entre 2013 e 2019 (portanto, antes da pandemia), a parcela de pessoas que relataram ingerir bebidas alcoólicas ao menos uma vez por semana cresceu todos os anos, chegando a mais de 26% do total de entrevistados. Em outras palavras, tomando por base a amostra, um em cada quatro brasileiros bebe com frequência. E esse contingente engrossou, sobretudo, com a participação do sexo feminino. No período fechado de sete anos, a quantidade de consumidoras aumentou em 31,8%, contra 2,1% de consumidores.

arte mulheres

Alessandra Diehl, vice-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e Outras Drogas (Abead), afirma que são vários os fatores que explicam por que as mulheres estão bebendo mais, mas destaca um em especial: a mudança do papel delas nas últimas décadas, o que as inseriu nos espaços antes dominados por homens. Ao que tudo indica, os millennials (nascidos entre 1981 e 1996) são os principais responsáveis por equiparar o consumo entre os dois sexos, fazendo do hábito de beber não apenas um fenômeno masculino. Mulheres entre 18 e 30 anos têm mais vida social do que suas mães costumavam ter e, no processo, acabam consumindo mais álcool.

Outro estudo, desta vez do periódico científico BMJ Open, demonstrou que, no começo do século XX, a frequência de consumo e o risco de uma pessoa se tornar alcoólica variavam muito de acordo com o gênero, sendo a incidência quatro ou cinco vezes maior entre homens. Cem anos depois, entretanto, a diferença havia caído para apenas 10 pontos porcentuais. Hoje, talvez pela primeira vez na história recente, as mulheres — mais especificamente as nascidas entre 1991 e 2000 — admitem beber tanto quanto os homens (ou até mais, em algumas situações), com probabilidade de ultrapassá-los de vez muito em breve. Os números — não exatamente positivos do ponto de vista da saúde — são dos Estados Unidos, onde os últimos dados coletados revelam que adolescentes e jovens adultas dizem beber e ficar embriagadas com mais frequência do que homens da mesma faixa etária.

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LEI SECA - Americanas contra a proibição em 1932: direito cerceado -
LEI SECA - Americanas contra a proibição em 1932: direito cerceado – (AP/Imageplus/.)

Acompanhamentos feitos pelos americanos evidenciam, ainda, que o consumo tem, em muitos casos, motivações diferentes entre gêneros. As mulheres se sentiriam mais motivadas a beber para lidar com alguns aspectos da vida, como ansiedade e stress. Alessandra Diehl concorda com a tese: “É comum vermos mulheres consumindo álcool como forma de escape para conseguir administrar a atribulada vida profissional e familiar”. Os homens, que não estão livres de dificuldades semelhantes, beberiam mais por prazer. O fato objetivo, porém, é que o abuso pode ter consequências severas para ambos os sexos. Nos Estados Unidos, o número de mulheres atendidas no pronto-socorro devido a intoxicação alcoólica cresceu 70% em um período de oito anos. A morte por cirrose aumentou 57% entre mulheres, contra 21% entre homens, considerando o espaço de tempo de quinze anos. Já na faixa dos 25 aos 44 anos, a incidência retrocedeu 10% entre pacientes do sexo masculino, crescendo 18% no sexo oposto. Outro dado alarmante mostra que as mulheres apresentam problemas com alcoolismo mais cedo do que os homens, além de precisarem de quantidades menores para desenvolver algum tipo de complicação.

Isso traz à tona o velho dilema: as mulheres seriam mais fracas do que os homens para beber? Fraco ou forte são conceitos relativos, mas, devido às diferenças entre os organismos, as mulheres têm uma resposta fisiológica menos satisfatória à bebida. Do ponto de vista científico, o corpo feminino apresenta quantidade menor de água e de enzimas responsáveis pela quebra das moléculas de álcool e, em contrapartida, um volume maior de gordura — o que dificultaria a capacidade em processar o álcool. Portanto, mulheres que bebem demais estariam mais sujeitas a se viciar e a ter problemas de saúde mais cedo do que os homens. “Antes víamos dois grupos de mulheres com problemas de alcoolismo: as que começam a beber após a menopausa, como forma de automedicação, e as mais novas, que bebem em baladas”, diz Patrícia Hoch­graf, psiquiatra do Programa da Mulher Dependente Química do Hospital das Clínicas. Ela explica que, hoje, o consumo entre as jovens supera o das mulheres maduras e que o HC tem recebido pacientes com alterações hepáticas que revelam que elas vêm bebendo demais e há muito tempo. Patrícia diz que o programa continua aberto a quem precisar de ajuda.

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DECISÃO PESSOAL - Ana Cañas no Rock in Rio: relação cortada com a bebida -
DECISÃO PESSOAL - Ana Cañas no Rock in Rio: relação cortada com a bebida – (Lu Valiatti/Brazil Photo Press/AFP)

Ana Cañas fez parte desse grupo de jovens mulheres que tiveram problemas com o álcool. A cantora, agora com 40 anos, teve coragem de admitir que, com a morte do pai, que era alcoólatra, passou a beber demais, inclusive antes de suas apresentações. Ela precisou, com muito esforço, dar um basta no consumo para vencer o vício que estava tomando conta de sua vida. Este caso, como tantos outros relatados por especialistas, coloca o álcool na berlinda: como continuar consumindo algo com tamanho poder de causar dependência? Pode parecer lugar-comum, mas a resposta — e a história prova isso — está na moderação. A já mencionada Lei Seca americana não trouxe benefício algum à sociedade, abrindo espaço para o contrabando e aumentando o poder do crime organizado.

Uma pesquisa da Universidade de Oxford mostra que há benefícios comprovados em beber socialmente e que os ingleses que têm um “pub de estimação”, frequentado regularmente, afirmam se sentir mais engajados e satisfeitos com a vida, além de se relacionar melhor com os membros de sua comunidade. Assim, o álcool pode servir como eficaz aglutinador de pessoas, desde que seja consumido moderadamente. Homens e mulheres bebem para se divertir, para se conhecer, para fazer amigos e descontrair. A presença ou ausência de álcool pode ser a diferença entre uma festa animada e um evento para ser esquecido. Mas aconselha-se sempre estar no controle da situação. Ou, como diria o escritor britânico G.K. Chesterton em sua definitiva recomendação: “Beba porque está feliz, nunca porque está triste”.

Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743

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