Varíola dos macacos exige, desde já, urgência da vacina contra preconceito
O que se quer é evitar o surgimento de um estigma sobre a doença, como o que aconteceu há 41 anos, quando começaram a aparecer os primeiros casos de aids
O primeiro passo para o enfrentamento correto de qualquer doença exige o cumprimento de algumas premissas básicas. Identificar suas causas e as pessoas mais atingidas são duas delas, absolutamente essenciais. No caso do surto atual da varíola dos macacos, cuja explosão obrigou a Organização Mundial da Saúde a decretar estado de emergência pública de preocupação global no sábado 23, a medicina tem certeza sobre o que a provoca, um vírus da mesma família do responsável pela varíola humana. Contudo, ainda tenta definir quais os indivíduos vulneráveis e por quê. Nesse primeiro momento, o que está claro é que a enfermidade se espalha preponderantemente entre homens que fazem sexo com outros homens, como demonstrou o mais extenso levantamento feito até agora, publicado há duas semanas no periódico científico The New England Journal of Medicine. De acordo com o relatório, 98% de 528 infectados em dezesseis países eram homossexuais masculinos ou bissexuais. Nada mais insidioso, no entanto, do que inferir, a partir daí, se tratar de um mal restrito a esse grupo. Não é. Entre os cerca de 19 000 casos contabilizados de maio até a terça-feira 26, há registros de contaminações de mulheres e de homens que não mantêm relações sexuais com pessoas do mesmo gênero e de três crianças — duas nos Estados Unidos e uma na Holanda.
É fundamental que o entendimento do que realmente ocorre seja absorvido pela sociedade. O que se quer é evitar o surgimento de um estigma sobre a doença, como o que aconteceu há 41 anos, quando começaram a aparecer os primeiros casos de aids. Na ocasião, o HIV, vírus causador da síndrome, incidia exclusivamente em homens homossexuais. Nos anos seguintes, embora a enfermidade avançasse em outras populações, o preconceito atrasou brutalmente a prevenção entre os novos grupos expostos. Ou eles não se sentiam vulneráveis ou tinham medo de ser alvo de discriminação. Além, é óbvio, de infligir sofrimento adicional aos pacientes. Foi preciso muito esforço para que a aids deixasse de ser a absurda “peste gay”, como era chamada, para ser compreendida como enfermidade que pode atingir a todos os que não se previnem no ato sexual por meio do uso de camisinha.
Na verdade, em relação à varíola dos macacos, o que intriga os médicos é o motivo pelo qual a doença se dissemina mais velozmente entre gays e homens bissexuais na eclosão atual. O vírus é endêmico na África, o que faz ser comuns os casos. No entanto, algumas características desse surto são distintas das vistas habitualmente tanto no perfil das pessoas afetadas quanto na manifestação da doença. Até agora, as infecções ocorriam de forma generalizada — é a primeira vez que elas prevalecem em um grupo específico — e o monkeypox, nome do vírus, nunca havia se espalhado mundo afora. As lesões causadas por ele, antes presentes mais no rosto, braços e pernas, estão aparecendo também em maior número nos órgãos genitais. Isso ajuda a explicar a alta incidência, desta vez, da transmissão via atividade sexual. No levantamento do The New England Journal of Medicine, 95% das infecções eram suspeitas de terem ocorrido dessa forma, facilitadas pelo contato com as feridas.
Por enquanto, porém, a enfermidade não é considerada doença sexualmente transmissível, caso do HIV, por exemplo. Embora o mesmo relatório do jornal científico recém-divulgado informe ter sido detectado material genético do monkeypox no sêmen de 29 entre 32 amostras colhidas, os cientistas dizem ser cedo para afirmar qualquer coisa a respeito do achado. “Se o sêmen transmite a infecção é algo a ser investigado, uma vez que não se sabe se o DNA viral encontrado era competente para replicação”, escreveram os autores do documento.
E, convém ressaltar, os sintomas podem ser controlados. O comunicólogo Lucas Raniel, 30 anos, não teve relações sexuais no período em que foi infectado, mas cumprimentou várias pessoas com abraços durante a Parada LGBTQIA+, realizada em junho em São Paulo. Raniel vive com o HIV desde 2013. O tratamento em dia, que impede a fragilização do sistema de defesa pelo vírus da aids, o ajudou a cuidar da doença contraída. Hoje, ainda bem, existem recursos de prevenção e controle da varíola. Primeiro, há vacina, em uso nos Estados Unidos e em países europeus — por aqui, ainda se negocia a compra das doses. Depois, graças aos medicamentos, a doença tem letalidade em torno de 3% a 6%, enquanto a da varíola humana, erradicada em 1980, era de 30%. Dos cerca de 19 000 casos somados nos últimos dois meses, cinco terminaram em morte.
Entretanto, o momento é de alerta. Ninguém sabe o que a proliferação de casos pode causar. Está aí a Covid-19 para mostrar. O mundo vive há dois anos e meio sob a ameaça de um tipo novo de coronavírus que já matou mais de 6 milhões de pessoas. E, é bom lembrar, até 2020 essa família viral causava somente resfriados. No caso do monkeypox, teme-se o registro de consequências graves se a doença atingir o status de epidemia ou pandemia especialmente em populações vulneráveis, como crianças, imunossuprimidos e grávidas.
“Na medida em que toma dimensões de transmissão comunitária, ela vai encontrar esses grupos”, alerta a epidemiologista Ethel Maciel, da Universidade Federal do Espírito Santo. “Gestantes podem passar o vírus monkeypox ao feto pela placenta e não conhecemos os resultados disso”, completa, lembrando a tragédia dos bebês nascidos com microcefalia após as mães serem infectadas pelo zika vírus em 2016. Na quarta-feira 27, foi confirmado o primeiro caso do tipo neste ano. Felizmente, a criança nasceu bem. Como ensina o mantra da medicina, portanto, é melhor prevenir do que remediar, interrompendo já a escalada da doença. A OMS acertou ao decretar emergência mundial, o que facilita ações coordenadas entre os países.
Agora, além do imunizante contra a doença, é preciso usar a vacina contra a discriminação. “Ela pode ser tão virulenta quanto o vírus”, diz a virologista Clarissa Damaso, da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Afasta os pacientes, atrapalha a detecção de contactantes e impede que os mais afetados sejam alertados.” O diretor da OMS, Tedros Adhanom Ghebreyesus, deu o primeiro passo da imunização antidiscriminatória — pelo menos é assim que, espera-se, tenha sido entendido. Ao orientar homossexuais e bissexuais masculinos a evitar o risco de infecção reduzindo parceiros, ele deixou claro que um estigma só aumentará a força do surto, como aconteceu com a aids. Mas lições existem para ser aprendidas. A ferida aberta do preconceito precisa fechar.
Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800