Viver até 200 anos: a ciência avança para estender limites da longevidade
Ainda que estejamos longe de combater por completo os efeitos inevitáveis do relógio biológico, nunca estivemos tão perto
A vida eterna é um desejo irrefreável do ser humano. Há 2 000 anos, o imperador Qin Shi Huang, o primeiro da dinastia Qin, na China, tentou alcançar a imortalidade ao ingerir pílulas de mercúrio. Ironicamente, morreu envenenado. No século XVI, o conquistador espanhol Juan Ponce de León navegou pelos novos mundos em sucessivas expedições que buscavam a fonte da juventude. Como se sabe, ele não a encontrou. Em pleno século XXI, a ânsia para ludibriar a finitude não diminuiu. Agora, contudo, ela conta com poderosa aliada: a ciência. A busca por formas de retardar o envelhecimento representa um dos movimentos mais fascinantes da medicina. A diferença é que, ainda que estejamos longe de combater por completo os efeitos inevitáveis do relógio biológico, nunca estivemos tão perto. “A primeira pessoa a viver até 200 anos já nasceu”, assegura o pesquisador Sergey Young, autor do livro recém-lançado The Science and Technology of Growing Young (ainda sem tradução para o português), que em poucas semanas já entrou para a lista dos mais vendidos nos Estados Unidos.
Aos 49 anos (aparenta bem menos), Young — sobrenome adotado ao emigrar da Rússia para os Estados Unidos — diz ter como missão mostrar que é possível estender para patamares extraordinários a expectativa de vida de até 1 bilhão de pessoas. Ele vai além. A longevidade não seria somente um fim em si, mas estaria acompanhada do que realmente interessa: a possibilidade de humanos centenários desfrutarem a plenitude da existência. Não faria sentido, diz este gestor de recursos obcecado por pesquisas, estudos e fórmulas matemáticas que retratem de alguma maneira o prolongamento biológico, viver muito, mas mal, e ultrapassar os 100 anos sem se sentir saudável. Em sua recente obra, que levou três anos para ser concluída, Young aponta os notáveis avanços que permitiriam aos humanos chegar aos dois séculos de vida (veja o quadro). Não há no livro nenhuma informação bombástica ou fórmula milagrosa. O trabalho dele se propõe, e de forma bem-sucedida, a reunir as principais tecnologias da ciência e da medicina nesse campo.
As descobertas biomédicas, em especial as que estão ligadas à genética, são consideradas a principal maneira de aumentar substancialmente a longevidade. Tome-se como exemplo a terapia CAR T-Cell. De maneira simplificada, ela consiste na transferência dos genes de uma molécula para outra. Para ficar mais claro: um paciente com câncer poderia ter suas células de defesa reprogramadas. Depois de modificadas, elas são capazes de destruir alguns tipos de tumores. O inovador tratamento já está disponível na Europa e nos Estados Unidos, e provavelmente logo será adotado em escala global, evitando que milhares de vidas sejam perdidas.
A medicina regenerativa é outro fator que certamente elevará o tempo e a qualidade de vida dos humanos. Nessa área, há façanhas que até pouco tempo atrás pareciam obra de ficção científica. Recentemente, médicos britânicos deram enorme passo para curar uma forma comum de doença ocular associada à idade. Ao usar células-tronco, eles restauraram a visão de pacientes com degeneração macular. Ainda mais fantástico é o desenvolvimento de órgãos artificiais. A chamada bioimpressão em 3D permitirá, por exemplo, a produção de tecidos hepáticos em laboratório, e não é difícil imaginar o impacto que a inovação causará no prolongamento da vida. Apenas nos Estados Unidos, dezessete pessoas morrem por dia à espera de um transplante.
O livro de Young também aponta os principais entraves para viver mais. Entre eles, a ausência de uma abordagem mais preventiva do que reativa e, claro, os hábitos ruins de boa parte da população. “As doenças ligadas ao envelhecimento podem ser controladas por políticas públicas direcionadas a quatro fatores de risco: má alimentação, falta de atividade física, consumo excessivo de álcool e tabagismo”, afirma o gerontólogo Alexandre Kalache, presidente do Centro Internacional de Longevidade Brasil. Apesar do papel irrefutável dos bons hábitos para expandir a duração da vida, prevenção e monitoramento são, em essência, o nome do jogo. “O diagnóstico precoce é o grande segredo”, reforça Carlos André Freitas dos Santos, coordenador do Programa de Envelhecimento Ativo da Unifesp. “Nós ainda tendemos a cuidar do problema apenas depois que ele aparece.”
Os debates acerca do limite da duração da vida humana são fascinantes. A maioria esmagadora dos seres humanos está geneticamente programada para morrer antes dos 100 anos, e até pouco tempo atrás isso parecia imutável. Um estudo recente publicado na revista Nature Communications indica que podemos viver, no máximo, até 150 anos — o humano mais próximo da marca hoje é a francesa Jeanne Calment, que chegou aos 122. Outra corrente, da qual Young faz parte, sugere que é incerto o limite da longevidade, e que certamente ela se estenderá muito. Um breve passeio pela história da humanidade permite certo otimismo. Na Renascença, quem vivia até os 30 anos podia se dar por satisfeito. A melhora do saneamento básico, o desenvolvimento de remédios e vacinas, o maior cuidado com a alimentação e a prática de atividades físicas fizeram a expectativa de vida mais do que dobrar em quatro séculos, chegando, na média, perto dos 70 anos atualmente. O número de centenários no mundo também aumenta sem parar: passou de 95 000, em 1990, para mais de 450 000, hoje em dia.
O único consenso entre os especialistas é que a longevidade precisa estar conectada à qualidade de vida. No clássico da literatura As Viagens de Gulliver, escrito em 1726 pelo irlandês Jonathan Swift, os struldbrugs, como são chamados os humanos imortais, são isolados do reino para viver em um lugar amargo e sombrio. Aos 90 anos, eles esquecem o nome dos amigos. Aos 200, não conseguem sequer reconhecer a língua do próprio país. São imortais biológicos, mas morreram para o convívio social. Quem gostaria de viver uma experiência triste como essa?
O caminho às avessas foi percorrido por Benjamin Button, personagem de um conto de F. Scott Fitzgerald interpretado no cinema por Brad Pitt. Button nasce velho e morre jovem, mas nem o relógio ao contrário foi capaz de aplacar a sua angústia. Agora, a destreza científica parece encontrar um caminho promissor — ser muito velho e saudável ao mesmo tempo. Isso, claro, é formidável. Talvez o humano que viverá 200 anos esteja por aí. Quem sabe seja você.
Publicado em VEJA de 15 de setembro de 2021, edição nº 2755