Quando os NFTs, os tais tokens não fungíveis, começaram a se tornar populares, muitos artistas viram na tecnologia uma tábua de salvação. Por serem únicos e insubstituíveis, esses tokens, com seus certificados de autenticidade, criariam uma conexão direta com o público e significariam uma forma de geração de recursos fundamental para manter a produção cultural viva, especialmente após a devastação do mercado provocada pela pandemia. O que se viu, no entanto, está longe desse cenário utópico. Após o afã inicial, que culminou na venda de uma obra do artista americano Beeple por 69,3 milhões de dólares, a lista de prejuízos dos investidores com o formato só cresce.
O jogador Neymar entrou no universo dos ativos digitais com um investimento de 6 milhões de reais em tokens da série Bored Ape Digital Yacht Club, uma das mais procuradas. Com a queda de cotação dos criptoativos, fenômeno que ganhou impulso em 2022, os NFTs comprados pelo jogador passaram a valer 800 000 reais. Justin Bieber também adquiriu alguns NFTs da mesma coleção, e amarga prejuízo semelhante. Talvez o caso mais expressivo seja o de Jack Dorsey, fundador do Twitter, que transformou sua primeira mensagem publicada na rede social em um token e o vendeu por 2,9 milhões de dólares em 2021. O NFT foi novamente colocado no mercado em abril deste ano por 48 milhões de dólares, mas o lance mais alto oferecido foi uma fração disso — apenas 280 dólares.
Como todas as tecnologias, é preciso tempo para que elas apresentem sua utilidade real e mostrem capacidade de atrair público mais amplo. É o que os especialistas conhecem como curva de adoção. No início, apenas os inovadores em série, aqueles mais conectados com tudo o que é novo, veem interesse naquilo. Depois, chegam os early adopters, como são conhecidos os adeptos das novidades. Só mais tarde entra a maioria da população. Ao que tudo indica, os NFTs não superaram o abismo entre esses públicos. “O grande desafio dos NFTs não é a ideia, que é boa, mas fazer com que as pessoas acreditem que ela vale a pena”, afirma o professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) Roberto Kanter, especialista em inovação.
Parte da dificuldade em fazer sentido para as massas está em entender exatamente o que são tokens não fungíveis. Trata-se de ativos digitais que usam a tecnologia blockchain, um método de criptografia que dá segurança a diversos processos. Ao contrário das criptomoedas, esses ativos são não fungíveis, ou seja, cada um deles é único. “Isso é uma grande limitação”, diz Kanter. “Ele precisa ser mais simples, mais facilmente entendido.” Não é apenas isso. Muitos não conseguem ver valor no formato, já que o detentor do arquivo original paga milhões para ter o certificado de posse, mas o documento pode ser replicado, divulgado e apreciado sem que nenhuma outra pessoa pague nada por isso. “Não adianta ter oferta se não houver demanda”, acrescenta o professor Kanter. Lembre-se que, na lógica de mercado, o preço é validado pela demanda. Se ninguém quer um produto, seu preço desaba. Isso, portanto, explica o prejuízo de Neymar e Justin Bieber.
A ideia de transformar a arte digital em algo tangível é interessante e vem sendo explorada por diversos profissionais. Músicos como Snoop Dogg lançaram canções inéditas apenas para quem comprasse seus NFTs. Fora do ambiente criativo, a tecnologia pode ser uma forma de assegurar a autenticidade de produtos ou garantir a propriedade intelectual de patentes. No universo dos games, é uma maneira de oferecer itens exclusivos aos jogadores. Ainda há muito a ser testado, mas já ficou claro que a promessa dos NFTs como salvação do cenário cultural não se concretizou. Diante dos prejuízos milionários envolvendo algumas das criações mais populares, não é exagero dizer que o destino desses tokens está bem longe das artes.
Publicado em VEJA de 2 de novembro de 2022, edição nº 2813