“Quem diabos é Steve Jobs?” A pergunta do diretor de cinema Ridley Scott, que algum tempinho antes, em 1982, tinha lançado Blade Runner — O Caçador de Androides, deixou boquiabertos os diretores da Apple que o procuraram para dirigir o comercial para a televisão de um novo produto. Scott inicialmente achou que trabalharia para uma campanha da gravadora dos Beatles. Aceitou a proposta, e da indagação inicial ouviu a resposta irônica e assertiva: “Será alguém um dia”. O anúncio de um minuto de duração — com orçamento de 370 000 dólares na época, o equivalente a atuais 1 milhão de dólares — foi ao ar pela primeira vez no intervalo do Super Bowl de 22 de janeiro de 1984, em Tampa, na Flórida, há exatos quarenta anos. Às favas quem ganhou a final do futebol americano (foi o Los Angeles Raiders contra o Washington Redskins). As bandas que fizeram o show do intervalo sumiram — eram grupos de música marcial de universidades locais. Aquelas imagens de Scott é que fizeram história, como panfleto inaugural de uma revolução.
O filmete celebrava a chegada às lojas do Macintosh, o primeiro Mac, batizado com o nome de um tipo de maçã. Baseado no romance de George Orwell, 1984 — antes de a expressão “Big Brother” ser idiotizada em programas de TV — mostrava o mundo cinzento de trabalhadores robotizados, forçados a acompanhar as imagens de um imenso telão. A cena é interrompida pela chegada de uma atleta que lança um martelo na direção do autoritário rosto, interrompendo a transmissão. Não se vê computador algum, mas a metáfora e o conceito pareciam evidentes: enquanto as outras empresas faziam mais do mesmo, a Apple pretendia explodir o lugar-comum. Dias antes, o próprio Jobs dera a deixa em uma palestra: “A IBM quer tudo e está mirando em seu último obstáculo para o controle do setor: a Apple. A Big Blue dominará toda a indústria de computadores? Toda a era da informação? George Orwell estava certo sobre 1984?”. Dois anos antes a revista Time dera o prêmio de “pessoa do ano” para o computador pessoal — o da IBM, movido por softwares da Microsoft de um quase imberbe Bill Gates. E então veio o Macintosh.
Foi pioneiro no uso de uma interface gráfica amigável e um adeus definitivo às letrinhas verdes em fundo cinza. O mouse passou a ser usado de modo maciço, embora parecesse então uma caixa feiosa de sabe-se lá o quê, um queijo, talvez. O mundo começava a mudar, a caminho de uma nova revolução industrial. Oferecido por 2 495 dólares (algo em torno de 7 300 dólares, agora) foi um estrondoso sucesso na largada, com mais de 50 000 unidades vendidas em somente três meses. O entusiasmo logo arrefeceu. No fim de 1984, a média mensal caíra para 10 000 unidades. O problema: o Mac era uma máquina ruim. A tecnologia que tornou possíveis as imagens na tela exigia muita energia, tornando o computador lento na execução de tarefas. A memória era de ridículos 128k. Era melhor ter um PC. Mas e daí? O rastilho de pólvora aceso pela equipe de Jobs não tinha mais como ser apagado — e ele nos trouxe aos dias de hoje, dos smartphones, tudo na palma da mão, fácil a ponto de alimentar o vício que nos paralisa, como se atrelados a um grande irmão.
Um modo de enxergar o tamanho do salto é ver o que a Apple tinha feito logo antes: os trambolhudos Lisa e o Apple II. Um outro modo de acompanhar a evolução: saber o que viria a seguir, e basta, para isso, olhar para o lado, quatro décadas depois. O Macintosh não era espetacular do ponto de vista técnico e tampouco representou ganhos extraordinários para a Apple. É fundamental porque mostrou ser possível ter computadores dentro de casa. Ninguém, até aquele momento, tivera a habilidade de transpor a complexidade de um laboratório para a sala de estar. Jobs, que morreu em 2011, aos 56 anos, avisara, com arrogância e certeza: “Quero deixar uma marca no universo”.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878