No mundo mágico de Harry Potter, o feitiço conhecido como “aparatação” faz com que, após o simples acionamento da varinha encantada, os bruxos desapareçam de um lugar e imediatamente surjam em outro. Nem isso, contudo, seria suficiente para afastar o bombardeio que a criadora do personagem, a britânica J.K. Rowling, vem sofrendo especialmente da comunidade trans, que a acusa de intolerância e preconceito. Os ataques agora ameaçam até os fãs do recém-lançado game Hogwarts Legacy, o mais esperado da saga desde que o bruxinho seduziu fãs na literatura e no cinema. Após inúmeros títulos decepcionantes, parecia que, pela primeira vez, o fascinante universo inventado por Rowling seria transportado, com a mesma exuberância, para o ambiente dos jogos eletrônicos. Mas a movimentação e o engajamento dos críticos têm sido tão intensos que feitiço algum daria jeito.
Tudo começou em 2019, quando a escritora fez os primeiros comentários considerados transfóbicos em seu Twitter (leia abaixo). Quando questionada pelos fãs sobre seus posicionamentos, Rowling endureceu o discurso. Desde então, passou a compartilhar conteúdos que incomodam a comunidade trans. Nos últimos tempos, criticou a nova legislação escocesa que permite que pessoas sejam legalmente reconhecidas pelo gênero com o qual se identificam. Nem mesmo o apelo de leitores a fez mudar de ideia. “Como você dorme à noite sabendo que perdeu uma parcela de seu público?”, escreveu um internauta. “Eu vejo meus cheques de royalties mais recentes e descubro que a dor passa rapidamente”, respondeu ela, com petulância. Até mesmo os atores dos filmes baseados na saga de Harry Potter se manifestaram contra as afirmações bombásticas de Rowling, tentando manter distanciamento seguro do caso. Com o lançamento do game, o tema voltou a ser discutido nas redes sociais com força total.
Ativistas e simpatizantes da causa LGBTQIA+ foram rápidos em se organizar e propor um boicote a Hogwarts Legacy. Alguns veículos especializados em games decidiram não cobrir o lançamento ou não fazer uma análise do jogo. Um deles, o Rock Paper Shotgun, publicou uma série de conteúdos focados em outros títulos que abordam a bruxaria e temas correlatos. “É importante que as pessoas saibam que a autora desse universo trabalha ativamente para dificultar a nossa existência”, afirma a youtuber e ativista Bryanna Nasck. O lobby que Rowling fez contra a legislação escocesa — disse que a ex-primeira-ministra Nicola Sturgeon estaria “destruindo os direitos das mulheres” — e a decisão de investir em um grupo que atende apenas mulheres vítimas de estupro, deixando as pessoas trans de fora, são algumas das atitudes que prejudicam quem se identifica como transgênero. “Estamos falando de vidas, de seres humanos que são impactados diariamente por isso”, diz Nasck.
Como costuma ocorrer nas redes sociais, os ânimos se inflamaram rapidamente. De um lado, os que saíram em defesa da escritora afirmaram que a reivindicação da comunidade trans é apenas uma forma de “cancelar” Rowling e uma tentativa de reduzir a discussão ao campo da superficialidade. De outro, a parcela mais radical perseguiu até mesmo quem decidiu apenas e simplesmente jogar o game, em busca de diversão. O assunto, claro, merece ser tratado com a seriedade que merece, mas sem radicalismos que impeçam o debate lúcido e sensato.
O problema é que as mídias sociais não foram feitas para fomentar as discussões saudáveis. “Os algoritmos privilegiam e favorecem o engajamento daqueles que adotam uma linguagem mais beligerante”, afirma Gabriel Rossi, sociólogo, pesquisador e professor de comunicação da ESPM. “Com isso, pautas importantes de militância política acabam sendo sufocadas”, completa o especialista. Também é comum que personalidades com muitos seguidores saiam da polêmica ainda mais fortes. O mesmo raciocínio vale para marcas que se tornam alvo de debates nas redes sociais. É o que está ocorrendo agora com o game Harry Potter. Apesar de todas as críticas, Hogwarts Legacy é um enorme sucesso de vendas, ocupando a primeira posição em lojas on-line. Ainda é cedo para ter certeza, mas a demanda sugere que será o título mais vendido do ano. Há outros exemplos. O ator Johnny Depp, que foi inicialmente “cancelado” por causa das denúncias feitas por Amber Heard, sua ex-mulher, saiu dos processos de difamação que moveu contra ela com a fama renovada.
O boicote a J.K. Rowling trouxe à tona, mais uma vez, a discussão sobre a separação entre o artista e sua obra. Críticos de literatura defendem a importância do trabalho do americano Ezra Pound, embora ele fosse simpatizante do nazismo. Os livros de Monteiro Lobato continuam a ser lidos por crianças, apesar de seu posicionamento racista. Muitas pessoas passam por cima dessas questões e decidem apreciar as obras pelo que elas contêm — mas isso é mais fácil quando fazem parte de um grupo que não é alvo de ataques. Às vezes, no entanto, o produto artístico está tão associado à maneira como o autor pensa que não é possível fazer tal distinção.
As declarações transfóbicas da escritora britânica fizeram com que a saga do bruxo fosse esmiuçada e outros elementos questionáveis acabassem sendo encontrados em seus livros, como a reprodução de estereótipos antissemitas na caracterização de alguns personagens. Saber como determinado autor pensa pode ter efeito benéfico. “Essas informações dão um novo filtro para ler ou revisitar a produção artística dessas pessoas”, afirma Marco Antônio de Almeida, sociólogo e professor da Universidade de São Paulo. “Você consegue rever as obras sob uma nova ótica e compreender as questões apresentadas de um jeito diferente, mais maduro.” No episódio específico de Rowling, muita gente acha que suas posições só trazem trevas e intolerância — ao contrário de suas obras, que iluminaram a vida de fãs do mundo inteiro.
Solidariedade literária
Quando J.K. Rowling fez as primeiras declarações polêmicas, alguns de seus colegas da agência literária The Blair Partnership exigiram um posicionamento da empresa sobre o apoio à comunidade LGBTQIA+. Na falta de uma declaração mais assertiva, o casal de escritores trans Fox Fisher e Ugla Stefania Kristjonudottir Jonsdottir, junto com o autor gay Drew Davies, decidiu abandonar a agência. Após a saída, divulgaram uma carta em que explicavam os motivos da saída. “Declarações de apoio às pessoas LGBTQIA+ como um todo precisam ser seguidas por ações significativas e impactantes, tanto interna quanto publicamente”, escreveram eles. A Blair Partnership fez pouco caso. “Acreditamos na liberdade de expressão para todos. Esses clientes decidiram sair porque não atendemos suas demandas para sermos reeducados para seu ponto de vista”, disseram eles, em um comunicado divulgado na época. Pouco depois, mais de 1 500 autores e funcionários do mercado editorial britânico também assinaram uma carta aberta criticando o posicionamento de Rowling. Nas redes sociais, até o americano Stephen King, um dos autores mais vendidos do planeta, manifestou seu apoio à comunidade trans. O escritor compartilhou uma mensagem de Rowling que tratava da importância de as mulheres compartilharem suas experiências, e a autora britânica respondeu dizendo que reverenciava King. Quando um fã entrou na discussão e perguntou ao escritor se ele acreditava que mulheres trans também eram mulheres, King respondeu de forma afirmativa. E Rowling apagou o elogio original. Fora do universo literário, a criadora de Harry Potter recebeu o apoio de Ralph Fiennes, que vive o vilão Lord Voldemort na saga de filmes, e do falecido Robbie Coltrane, intérprete de Hagrid.
Publicado em VEJA de 22 de fevereiro de 2023, edição nº 2829