Como a extrema direita renasceu e tomou o poder em vários países? Por que as redes sociais são dominadas por discursos de ódio, fake news e conflitos entre radicais, de todos os lados? O que levou à atual polarização política que se espalhou por Brasil, Estados Unidos, boa parte da Europa?
Em Os engenheiros do caos: Como as fake news, as teorias da conspiração e os algoritmos estão sendo utilizados para disseminar ódio, medo e influenciar eleições, lançado no Brasil pela Vestígio, o cientista político franco-italiano Giuliano Da Empoli ensaia bem lapidadas respostas a essas questões, assim como esclarece a dúvida que ele próprio levanta no subtítulo da obra. O trabalho se destaca de outros de motivos similares, como as obras de pensadores contemporâneos como Byung-Chul Han e Yuval Noah Harari, por não se limitar a futurismos e teorias. Muito pelo contrário.
Da Empoli trata de nosso tempo, do agora, não do que ainda virá. Para tanto, revela quem são os “engenheiros do caos” que, às ordens de novos políticos populistas (e, em algumas situações, como na Itália, chefiando-os), espalham um pandemônio nas redes sociais – e que impregna a vida real. Em estratégia que foi decisiva para a eleição de figuras como Jair Bolsonaro, Donald Trump (EUA), Viktor Órban (Hungria), Matteo Salvini (Itália), dentre outros.
Na entrevista a seguir, Da Empoli explica como esses “engenheiros do caos” têm dominado algoritmos para manipular a ira da população, em favor de agendas políticas radicais e esfumaçadas. E assim levam ao poder novos tipos de populistas.
Uma das principais teses de seu livro é a de que políticos de uma nova onda populista, como Jair Bolsonaro, Donald Trump e os ligados ao movimento italiano 5 Estrelas, manipulariam eleitores por meio de redes sociais. Como fazem isso? Apoiam-se na lógica pré-estabelecida das plataformas da internet, como o Facebook. As redes sociais procuram o maior engajamento, as curtidas, o compartilhamento. A qualquer custo. Para o algoritmo, não importa que tipo de conteúdo é destacado. O que se quer é atrair o envolvimento dos usuários. Pode ser com fake news, fofocas, ou mensagens radicais, e que mexem com as emoções das pessoas, e assim servem de imã para o chamado engajamento. Assim operam esses sites e apps, sem ter qualquer consideração pela qualidade, ou veracidade, do que se publica por meio deles. Os políticos populistas captaram essa lógica e a reproduziram. Às vezes de forma intuitiva, noutras em estratégias sofisticadas, ou em uma soma de ambos, alimentam as redes sociais com aquilo que mais atrai eleitores. E, repito, aí também vale tudo: mentiras, extremismos, o que for.
Os populistas de antigamente já não eram assim? Uma grande diferença é que hoje o político não precisa ter um grupo como alvo. Ele não tem de falar a uma maioria, encontrar um setor da sociedade para representar, achar uma mensagem que toque a população, como um todo, ou quase todo. Os populistas do século XX apelavam a uma massa. Os de hoje usam algoritmos para mandar mensagens individualizadas. O que vale é elevar o nível de excitação das pessoas, recorrendo à manipulação de emoções extremas. Pouco importa a coerência da mensagem. Por isso os populistas atuais, como Bolsonaro, passam mensagens antagônicas.
Como assim? Fazem isso ao detectar, pelo comportamento demonstrado nas redes sociais, o que incomoda cada pessoa. O populista de hoje não se importa em ter uma ideologia, uma consistência no discurso. Para quem tem raiva de “algo”, enviam anúncios dizendo que seus rivais vão promover esse “algo”. E para quem aprova esse mesmo “algo”? Aí direcionam posts que tentam defender que seus concorrentes vão destruir o “algo”.
É possível manter uma agenda política assim? Os novos populistas não fazem só campanhas. Eles promovem shows. Para entreter o público e ganhar votos. Enquanto isso, porém, solidificam suas estratégias de governo. Controlam o estado, com ideologias e táticas com as quais se esforçam para esconder do público o que fazem por trás dos posts nas redes sociais.
Não existe nenhum traço comum ao discurso dos novos populistas? Além do aspecto de espetáculo, o enfrentamento às elites, quais forem elas. Quando eles mentem, e a mídia escancara a falácia, o que fazem? Culpam os jornalistas, que são aí apontados como um tipo de elite. Se há uma crise econômica, por falhas de políticas adotadas por seus governos, o que fazem? Culpam os ricos. Sempre jogam a responsabilidade para os outros, sejam celebridades ou repórteres.
Após chegarem à presidência, todavia, precisam governar. Não ficam aí escancarados os problemas, a ineficácia na gestão? Isso não fará com que eles percam os eleitores que conquistaram. Afinal, a principal promessa de campanha eles continuam a cumprir: atacar o establishment. Agridem quem estiver no topo, sejam famosos ou intelectuais. Mesmo que sem argumentos, sem razão, ou até quando eles mesmos, os populistas, representam interesses de uma elite, como a financeira. No fim, os novos populistas funcionam como algoritmos de redes sociais. Detectam o que mais causa engajamento. As falas, de emoções extremas, que mais atraem curtidas e compartilhamentos. Só isso importa a eles, como se fossem algoritmos atraindo usuários para as redes sociais. Ou seja, se o que causa furor é agredir o establishment, ou então as minorias, é isso o que fazem. Para tal, apoiam-se em anseios honestos da população, mas para promover ações irracionais, mentirosas, manipuladoras.
Esse tipo de estratégia coloca em risco a democracia? Com certeza. Vale lembrar que os primeiros políticos a usar com essa habilidade as redes sociais foram os democratas, nos Estados Unidos. Em especial ao longo da segunda campanha presidencial de Barack Obama, em 2012. Ele percebeu como os sites e apps servem de microscópio para personalizar mensagens a um ou outro indivíduo. Foi só depois que as ideologias de extrema, sejam de direita ou de esquerda, se apropriaram dessas ferramentas, tornando-as claramente nocivas à democracia.
Nocivas? Os algoritmos vão de acordo com os humores momentâneos da sociedade, e os populistas reproduzem isso. O efeito é oposto ao que prega a democracia. No sistema democrático, o anterior às redes sociais, um candidato precisava ajustar seu discurso para encontrar um meio-termo que agradasse a uma ampla diversidade de eleitores. Hoje em dia, pode-se falar uma coisa para um, outra para outro eleitor. Um presidente ainda pode ter uma opinião num dia, outra noutro dia, mudando conforme os trending topics. Quando se pensa nesse cenário, é possível fazer um paralelo a como era pouco antes da ascensão do nazismo e do fascismo, em meados do século passado. Naqueles tempos, tecnologias como o rádio, o cinema, a TV, combinadas à propaganda política, foram usadas para minar a democracia. Agora, abusam da internet, com objetivos similares: em vez de promover a democracia representativa, estimular o populismo, o controle, um estado administrado com base em autoritarismo e sensacionalismo. Para assim adaptar os políticos a uma era na qual as pessoas esperam respostas instantâneas para qualquer coisa. Na realidade, respostas instantâneas não existem na política.
Há remédio para esse problema? A democracia precisa se adaptar a esse cenário. Pensadores como Yuval Noah Harari, do ótimo Homo Deus, já vislumbram um futuro no qual a democracia seria substituída por um sistema guiado por dados digitais. As escolhas seriam determinadas pelos algoritmos. O que poderia até ser eficiente, mas em nada seria democrático. Já existe, inclusive, um modelo próximo disso: o regime atual na China. Espero que realmente esse não seja o destino na maioria dos países. Torço para que possamos encontrar formas de garantir os valores mais fundamentais da democracia.
De qual maneira fazer isso, diante desses novos populistas? É preciso não cair nas armadilhas deles. Bolsonaro, Trump, entre outros, falam um absurdo, uma atrocidade, todo dia. Por quê? Pois querem pautar a população e a mídia. Quando os questionam, logo sabem quem culpar: o establishment. Para não ser refém da agenda deles, é preciso eliminar a fumaça que criam, jogando luz sobre temas importantes, urgentes, e assim desarmando os populistas. E aí se torna possível propor outro tipo de agenda de discussões.