Poucos desconfortos são mais chatos que a náusea das travessias em barco. O mal de mer, na expressão em francês, que designa à perfeição a reação do organismo, é receio permanente de quem singra o oceano a bordo de lanchas ou em navios de cruzeiro. Foi sempre um problema incontornável, apesar da avalanche de dicas que pululam na internet para minimizar os efeitos do mal-estar. Os paliativos vão de remédios com jeitão de placebo à escolha de cabine na parte central do navio. Nada, contudo, parece funcionar muito bem. Não obstante todos os avanços nos meios de transporte, em terra, água e ar, a náusea ainda é uma constante.
A boa notícia: no último dia 31, foi anunciada a primeira viagem de um navio ancorado numa tecnologia antienjoo. Em tese, a estrutura da embarcação garante sua estabilidade, sem que se penda para cima e para baixo, no balanço costumeiro das marés. A jornada inaugural do X-Bow, fabricado pela norueguesa Ulstein a pedido da agência australiana Aurora Expeditions — especializada em turismo de aventura e longos passeios em alto-mar —, será entre a Argentina e a Antártica, no fim deste ano, no primeiro teste real da invenção. A engenharia por trás do casco do barco, de 104 metros de comprimento, foi inteiramente pensada para proporcionar uma navegação tranquila.
A principal adaptação se encontra na proa, a parte da frente, com design inspirado no bico das imensas aves polares (veja o quadro). Enquanto cruzeiros regulares sobem e descem, acompanhando a maré, o X-Bow, cujo primeiro modelo foi batizado de Greg Mortimer — em homenagem ao explorador australiano, hoje com 66 anos, líder de diversas expedições pelo Polo Sul —, fura as ondas com seu bico pontiagudo. A energia mecânica acumulada no impacto frontal se dispersa de modo homogêneo pelas laterais, o que resulta em movimentos suaves e, logo, em menor risco de provocar náusea nos passageiros. A chefe de marketing da empresa norueguesa, Victoria Primrose, brinca com o desenho da novidade: “Perdemos aquele momento Leonardo DiCaprio e Kate Winslet ao som de violinos”, diz ela, dada a impossibilidade de chegar à cimeira frontal do navio.
Mas o que importa — para além da economia de combustível que o estilo do barco também propicia e para além do bem-estar — é o aceno para um desafio que acompanhou as civilizações. Ao escrever ao pai, a bordo do Beagle, em 1831, Charles Darwin lamentou: “O enjoo que senti foi muito além do que jamais imaginei. Se não fosse esse mal-estar, o mundo inteiro seria de marinheiros”. Muito antes, na antiguidade clássica, o poeta grego Homero, na Ilíada, fizera referência aos estragos metabólicos. Napoleão Bonaparte, em travessia até o Egito, também registrou o incômodo do sobe e desce. Desde sempre, portanto, cientistas, médicos e engenheiros navais se debruçaram sobre o problema, aparentemente sem resposta adequada.
O enjoo é uma reação do corpo humano ainda em investigação. Sabe-se que 65% das pessoas já experimentaram a náusea em algum momento da vida. Há uma teoria predominante sobre o que causa tontura e dor de cabeça: elas brotam nas situações em que os sentidos se confundem — o olhar para uma direção, a audição para outro, e os músculos se contraindo. É o que ocorre, por exemplo, dentro de um carro nas curvas de uma estrada. Toda essa sinfonia, às vezes desafinada, se dá no chamado sistema vestibular dos ouvidos, que lida com o movimento e o equilíbrio. O Greg Mortimer pode oferecer o primeiro fio de esperança aos 100 passageiros do pioneiro tour. Se eles chegarem à Antártica firmes e fortes, sem enjoos, terão feito história.
Publicado em VEJA de 13 de novembro de 2019, edição nº 2660