Os raios X foram descobertos por acidente pelo alemão Wilhelm Roentgen em 1895, quando ele pesquisava os raios catódicos, que seriam aplicados mais tarde nos primeiros aparelhos de TV. A invenção rendeu a Roentgen o Prêmio Nobel de Física e se espalhou pelo mundo. Chapas com impressão radioativa passaram a revelar ossos quebrados, perfuração por bala e pneumonia. O raio X se tornou tão popular que chegou a ser usado em lojas de sapatos: os clientes adoravam ver os ossos dos próprios pés dentro do novo calçado. Superman, o primeiro super-herói dos gibis, criado em 1938, via através de tudo e todos nos anos 1940 e 1950, justamente quando os aparelhos nos hospitais começaram a ser questionados pelas autoridades médicas por expor as pessoas a quantidades nocivas de radiação. Porém, tecnologias mais seguras e avançadas, seguindo a evolução já trazida pela ressonância magnética, a tomografia e o ultrassom, continuam a revolucionar a capacidade de ver através de objetos, no escuro e dentro de seres vivos. É o poder do Superman, cada vez mais próximo do homem comum, sendo usado na medicina, na segurança e, infelizmente, na guerra.
No Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), um dos principais centros de pesquisa dos Estados Unidos, está sendo desenvolvido o RF-Pose, uma inovação capaz de detectar e traduzir a interferência que a frequência de ondas de rádio sofre quando encontra o corpo humano, ignorando a presença de obstáculos sólidos. Como resultado, o RF-Pose é capaz de captar a posição (pose) de um ser humano, independentemente de obstruções como paredes, na forma de um boneco de palito 2D, como aqueles usados em desenhos rudimentares. A primeira versão do aparelho tem alcance limitado a poucos metros, mas, se já estivesse disponível no mercado, poderia ser utilizada, por exemplo, em casas de repouso para monitorar a movimentação de idosos.
Visão de Raio X
Entre as ondas de rádio do RF-Pose, que em tese não oferecem risco à saúde, e a perigosa radiação infravermelha, na qual se encontram os raios X, existe uma outra frequência conhecida como terahertz, popularmente chamada de raios T. Escâneres com essa tecnologia poderiam ter inúmeras aplicações na medicina e na segurança de aeroportos, uma vez que emitem baixa radiação. O problema, segundo os pesquisadores, é gerar luz suficiente na banda T e, principalmente, ter uma superfície resistente e sensível o bastante para captá-la e formar uma imagem. Mas cientistas da Universidade de Maryland, também nos Estados Unidos, encontraram a solução no grafeno, película flexível e excelente condutora de eletricidade, já usada em alguns segmentos da indústria. O que segura o avanço mais rápido do raio T é a própria produção do grafeno, substrato de carbono do grafite, cujo custo de extração é altíssimo.
No campo de batalha
A capacidade de enxergar além do campo normal de visão, no entanto, não está restrita às ondas de rádio e aos múltiplos níveis de radiação. Conseguir ver no escuro, virando a esquina e o que está atrás das barricadas em um campo de batalha é uma capacidade que militares estão adquirindo com a utilização de alta tecnologia em recursos ópticos tradicionais. O Exército americano pretende investir mais de 1 bilhão de dólares na aquisição de 40 000 óculos especiais que podem dar aos soldados de infantaria vantagens praticamente insuperáveis sobre o inimigo. Os óculos — que, na verdade, são visores de realidade aumentada, derivados dos videogames — têm nada menos que sete câmeras embutidas (cinco frontais e duas laterais), que permitem ao usuário enxergar tudo à sua volta, inclusive à noite. As câmeras gravam vídeo, conferem visão noturna e detectam calor. Ampliam e aproximam imagens, fazem mira para acertar alvos e ainda projetam mapas diretamente no visor quando reconhecem a área. Além disso, o acessório pode ser conectado a câmeras montadas em tanques de guerra, na ponta de fuzis e em drones que sobrevoam a região conflagrada. Assim, o usuário tem acesso não só às imagens geradas por seu dispositivo, mas também às que vêm de equipamentos de apoio no céu e na superfície.
Imagine a seguinte situação: um soldado desconfia que há uma emboscada virando a esquina. Sem tecnologia, o risco de ser alvejado só de pôr a cabeça à mostra, na tentativa de ver algo, é enorme. Na verdade, centenas de militares perdem a vida dessa forma todos os anos. Com a nova tecnologia, por meio de câmeras no veículo blindado despachado à frente — ou pela câmera no fuzil ou no drone —, o combatente pode detectar múltiplos atiradores, até mesmo na escuridão. Definitivamente, óculos com tantas funcionalidades têm o poder de transformar um cidadão comum em um super-homem ou, em caso de guerra, em um supersoldado.
A história mostra que novas tecnologias, quando surgem, costumam tomar dois caminhos distintos: um para salvar vidas e o outro para tirá-las. É assim com aviões e energia nuclear ou com automóveis e agrotóxicos. Os poderes conferidos ao homem pela visão de raio X não são mais ou menos perigosos que a força bruta ou a capacidade de voar. Cabe à sociedade e a seus indivíduos decidir como aplicá-los.
Publicado em VEJA de 24 de março de 2021, edição nº 2730