Em 1967, dois anos antes de Neil Armstrong pôr os pés na Lua, e logo depois de os soviéticos pousarem uma sonda, a Lunik-9, em seu chão rochoso, Gilberto Gil escreveu uma de suas mais bonitas composições, celebrando o feito, mas preocupado com o futuro. “A mim me resta disso tudo uma tristeza só / Talvez não tenha mais luar para clarear minha canção / O que será do verso sem luar? / O que será do mar, da flor, do violão?” Ao alcançarmos o inalcançável, talvez tenhamos perdido um pouco de poesia, vá lá, mas deu-se um imenso salto científico — doze astronautas pisaram na Lua, 561 foram ao espaço. O encanto agora é outro, o cosmo deixou de ser algo apenas ao alcance de uma estrofe lírica para o comum dos mortais. Na sexta-feira 7, a Nasa, a agência espacial americana, anunciou que abrirá as portas da Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês) a missões privadas, a qualquer pessoa. Ou seja: a partir do ano que vem, será possível reservar assento numa das viagens tripuladas rumo à ISS, que viaja a 28 000 quilômetros por hora na órbita terrestre.
Só terá chance de embarcar quem for aprovado numa bateria rigorosa de testes de capacidade física e de saúde — quase nada, em comparação com o salgado preço da aventura. O voo de ida e volta sairá por 50 milhões de dólares por passageiro. A diária chegará a 35 000 dólares — e como cada visita prevê no mínimo trinta dias de estada, somando-se adaptação e permanência, acrescente-se aí pouco mais de 1 milhão de dólares. Estão incluídas amenidades como oxigênio, água e pensão completa. Haverá internet disponível, mas cada gigabyte enviado e recebido custará 50 dólares. O preço exorbitante da empreitada evidencia não se tratar de um destino meramente turístico, embora a Nasa deixe aberta essa possibilidade. O anúncio envolve outro grande passo para a humanidade (ou melhor, para os Estados Unidos): a ideia central é acelerar a transição da exploração espacial dos cofres públicos para a iniciativa privada.
Desde a aposentadoria do programa de ônibus espaciais, em 2011, o governo americano não tem meios próprios para mandar novos astronautas à ISS. Há contratos assinados com dois fornecedores privados para enviar carga e tripulantes ao espaço, ao custo estimado de 7 bilhões de dólares. Um deles é a divisão espacial da Boeing, a fabricante de jatos comerciais, em parceria com a Lockheed Martin, gigante do setor de defesa. O outro é a SpaceX, companhia criada pelo empresário sul-africano Elon Musk, que fundou o PayPal e hoje comanda a montadora de carros elétricos Tesla. O britânico Richard Branson, dono do conglomerado Virgin, é outro magnata que investe no setor. Sua intenção é promover voos na fronteira da Terra para os interessados em desembolsar cerca de 250 000 dólares pelo passeio. Não bastasse a vista espetacular a 100 quilômetros de altitude, haverá a experiência de alguns minutos em gravidade zero, quando as pessoas poderão flutuar livremente pela aeronave.
O incentivo ao dinheiro das empresas, para além de evitar rombos suplementares ao contribuinte em troca de promessas futuras, pouco palpáveis, encaixa-se perfeitamente na nova estratégia da Nasa. Ao dividir os custos operacionais da ISS (4 bilhões de dólares anuais) com marcas comerciais, a agência espacial pretende destinar seus recursos a voos mais longos, num aceno à conquista de cinquenta anos atrás. No ano passado, Donald Trump anunciou uma nova missão tripulada à Lua até o ano 2028 — prazo encurtado pelo vice-presidente Mike Pence para 2024. Em seu estilo, misturando alhos e bugalhos, um tanto no mundo da Lua, quase incompreensível, Trump tuitou no dia seguinte ao do anúncio do turismo espacial na ISS: “Eles (a Nasa) deveriam estar focados em coisas muito maiores, incluindo Marte (de que a Lua faz parte), defesa e ciência!”. Lua, parte de Marte? Críticas a uma iniciativa que vai poupar recursos públicos e concentrá-los no real objetivo? Só no peculiar universo de Donald Trump.
Publicado em VEJA de 19 de junho de 2019, edição nº 2639
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