O futuro do passado: a promissora era da inteligência artificial na arqueologia
Os recursos de tecnologia de ponta abrem caminho para a solução de grandes enigmas

A antiguidade já não é mais como costumava ser. Em um dos mais interessantes movimentos alimentados pelos recursos da inteligência artificial (IA) atrelados à ciência, brotam recursos de investigações arqueológicas — e o que antes parecia improvável virou possível, ao revelar enigmas por trás das camadas de poeira. As novidades surgem a todo instante. Exemplo mais recente disso foi o caso de um pergaminho de 2 000 anos reduzido a carvão pela erupção do Vesúvio, na Itália. Ele estava enterrado debaixo das cinzas da mítica cidade de Herculano. O documento parecia condenado ao silêncio, mas começou a falar.
A primeira palavra reconhecida foi o equivalente a “roxo”, em grego. Depois, em um processo batizado de desenrolamento virtual, a peça foi sendo traduzida. Há, agora, ao menos quinze trechos que, em futuro breve, serão costurados a ponto de entregar algo coerente. Combinando tomografia de alta resolução e um feixe de luz síncrotron — um tipo de radiação eletromagnética gerada por partículas aceleradas a velocidades próximas à da luz —, a IA ajudou os cientistas a esmiuçar nacos que podem marcar a inauguração de uma nova era.
É um divisor de águas comparável, na paleontologia, ao advento da datação por carbono-14, descoberta na década de 1940 pelo americano Willard Libby, ao perceber que a quantidade do elemento nos tecidos orgânicos mortos — um fóssil, por exemplo — diminui a um ritmo constante com o passar dos anos. “A IA resolve problemas extremamente complexos, como tornar os traços de tinta mais legíveis e identificar camadas individuais mesmo quando estão muito danificadas e sobrepostas”, disse a VEJA Brent Seales, professor de ciência da computação na Universidade de Kentucky, um dos mais reputados especialistas no tema.

O sucesso inicial com o pergaminho de Herculano é a ponta de um espetacular iceberg. Um grupo de pesquisadores da Universidade de Tel Aviv, em Israel, utilizou IA para recriar a planta da antiga cidade de Afula. Eles alimentaram um computador com mapas aéreos antigos, desenhos da cidade e outros dados arqueológicos, o que permitiu que o programa identificasse padrões e estruturas urbanos, possibilitando assim a reconstrução virtual de ruas e edificações.
Em outro caso, arqueólogos aplicaram IA, sempre ela, para decifrar tábuas de argila da antiga Ugarit, no que hoje é o norte da Síria, com textos como cartas, receitas e mitos. A IA foi capaz de reconhecer os padrões, de modo a verter para o inglês documentos da antiga Mesopotâmia, escritos em acadiano. O sistema é capaz de traduzir tanto os glifos cuneiformes originais quanto as transliterações, representações desses sinais em escrita latina. O método consegue também reproduzir o estilo original, permitindo ao modelo identificar se um texto é administrativo, religioso ou de outro gênero. Vive-se, portanto, um período de acelerado desenvolvimento, como nunca antes.
O Brasil comemora um belo quinhão nessa aventura. Ancorados no celebrado sensoriamento remoto aerotransportado — o Lidar, na sigla em inglês —, pesquisadores do Norte estão mapeando sítios arqueológicos em regiões da Amazônia em risco ambiental, visando oferecer uma proteção mais efetiva. Há muito mais em camadas subterrâneas, atalho para compreensível empolgação. “A combinação de IA e escaneamento de alta precisão pode ser aplicada não apenas na leitura de textos antigos, mas também na reconstituição digital de peças danificadas e na análise de estruturas arqueológicas”, relatam, em trabalho reputado, Maria Isabel D’Agostino Fleming e Vagner Carvalheiro Porto, do Laboratório de Arqueologia Romana Provincial (Larp) da Universidade de São Paulo (USP). “A arqueologia digital está nos levando a revisitar achados e reescrever a história.” É como uma ampla janela virtual que se abre para o passado.
Publicado em VEJA de 21 de fevereiro de 2025, edição nº 2932