Os detalhes das missões de retorno à Lua – e o possível conflito de interesses de Musk
A retomada da conquista espacial, com investimentos privados, vive desconfiança com a nomeação do bilionário para um cargo no governo de Trump

Iniciada nos anos 1950, a corrida espacial foi um marco da Guerra Fria, duelo entre Estados Unidos e União Soviética numa competição tecnológica tingida por ideologia. Os soviéticos saíram na frente, em 1957, com o lançamento do Sputnik 1, o primeiro satélite artificial, e o envio da cadela Laika ao espaço. O cosmonauta Yuri Gagarin tornou-se, em 1961, pioneiro ao orbitar o planeta azul. Os americanos responderiam à altura em 1968, com a missão Apollo 8, ao instalar a tripulação de três homens ao redor da Lua, próxima, muito próxima do chão pedregulhoso cor de flicts. Um dos astronautas faria um registro lindo, batizado de Earthrise, uma das tais fotografias da canção de Caetano. Em 1969, Neil Armstrong daria, enfim, um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade. E então, em dezembro de 1972, a Apollo 17 encerrou a aventura da conquista lunar. A partir daí, poetas, seresteiros e namorados voltaram a olhá-la como algo distante e inalcançável, uma impossibilidade.
É capítulo prestes a ser encerrado. Um pouco antes da virada do ano, os diretores da Nasa confirmaram a jornada da cápsula Orion, bastião do projeto Artemis II, a caminho da Lua. A excursão foi reagendada para setembro de 2026, com quatro pessoas a bordo e um par de ineditismos: o primeiro profissional não branco e a primeira mulher a comporem uma heroica equipe. Prevê-se, para o fim de 2027, a descida ao solo acima de nossas cabeças.

Uma pergunta se impõe: por que, cinco décadas depois, retornar à Lua? As motivações são semelhantes, misto de jogo de poder (agora com Estados Unidos e China no centro da cena, mas cercados de outros países, como a Rússia, a Índia, o Japão e um consórcio de nações europeias, entre outros) e aceleração de pesquisas de ponta. Com uma novidade vital: a boa parceria com empresas da iniciativa privada, como a SpaceX, de Elon Musk, e a Intuitive Machines, de Stephen Altemus. “A participação de companhias particulares, sem o uso de dinheiro público, desempenha papel fundamental na ampliação do leque de atores envolvidos na exploração lunar”, diz Yang Gao, pesquisadora do departamento de engenharia do King’s College London.
A competição virou uma batalha comercial empolgante. Há um fato inquestionável: o páreo já não tem apenas dois cavalos, em movimento extraordinário. A principal aposta, sinônimo de economia e de investimentos rentáveis: o uso de foguetes reutilizáveis, que possam ir e voltar, são e salvos. A SpaceX, de Musk, é quem lidera a disputa nesse campo. “O desenvolvimento da indústria espacial é de interesse para muitos países”, disse a VEJA Jacco van Loon, astrofísico da Universidade de Keele e membro da União Astronômica Internacional. “Essas empresas devem assumir a liderança na exploração espacial e terão governos e cidadãos como seus clientes.” Essa possibilidade, real, sim, de qualquer um (com muito dinheiro, claro) poder viajar para o infinito e além, é o que torna a nova onda tão celebrada.
Há, contudo, dificuldades. A missão Artemis, que começou a ser pensada no início da década passada, levou anos para ganhar fôlego e sofreu diversos atrasos até que a primeira fase, não tripulada, fosse lançada com sucesso, em 2022. A segunda etapa, que há menos de um mês foi reagendada para 2026, estava prevista para 2024, mas sofreu sucessivos adiamentos, por questões de segurança e enroscos de contrato — efeito indesejado, mas previsível, das iniciativas público-privadas. Contudo, ainda que se vá esperar mais um pouco para o sucesso, o ano começa com as atenções voltadas para a turma que voará alto, embebida de tensão atávica: os nós políticos, difíceis de desatar.
A posse de Donald Trump para seu segundo mandato, em 20 de janeiro, é preocupante — ou, na melhor das hipóteses, representa um momento de virada, a partir do qual tudo pode seguir como o esperado ou então sofrer um freio decepcionante. Trump promete mudanças em toda a estrutura de governo, e é natural que a Nasa e seus pares possam vir a ser afetados. O republicano sempre admirou os programas espaciais, como aliás a grande maioria dos presidentes eleitos por seu partido, como Richard Nixon e Ronald Reagan, em especial. É tendência que não deve mudar. No entanto, o desdém com a chamada ciência básica, sempre menos vistosa, pode vir a prejudicar o conjunto do trabalho de reconquista da Lua.

Dito de outro modo: Trump dará corda ao espetáculo de lançamentos e pousos, tudo aquilo que antes víamos em transmissões ao vivo pela televisão e hoje pulula nas redes sociais. Porém, tenderá a fechar os olhos para o comezinho, o miúdo, mas fundamental. Um exemplo: a descoberta recente de água no polo sul do satélite só foi possível depois de extensas análises feitas em amostras trazidas da Lua e investigadas em laboratórios de universidades, ímãs de conhecimento — centros de estudo e de ciência que o presidente reeleito antes tratou com negligência.
Deve-se reconhecer, a bem da verdade, que foi de Trump a largada para a Artemis, em sua gestão inaugural na Casa Branca. Privatista até o derradeiro fio dos cabelos alaranjados, é certo que ele tratará de alimentar a dinheirama em órbita. O problema é o desrespeito com as atividades sem charme, escondidas mesmo, mas sem as quais nada caminha. Haverá, enfim, um balé coreografado por paradoxos. “A administração de Donald Trump pode ser positiva para a missão Artemis, mas ele tende a reduzir os investimentos públicos em ciência básica, como fez na primeira gestão”, afirma o astrofísico Thiago Signorini Gonçalves, do Observatório do Valongo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Um aspecto provoca sombras, e não há como desdenhá-lo, dado um dos personagens no palco: Musk, sempre ele, o brigão de nosso tempo, designado a comandar uma pasta montada para reduzir os gastos estatais. Até aí, tudo bem, é coerente com a plataforma trumpista apresentada aos eleitores e espalhada aos quatro ventos. Mas há desconforto por representar conflito de interesses. Mas como pode, se o dono da chave do cofre é o mais interessado em fazer fortuna com foguetes e mira descer em Marte um dia? Não bastasse a nomeação de Musk, apoiador de primeira hora, Trump concordou com a escolha para a chefia da Nasa do bilionário Jared Isaacman, que no ano passado fez uma caminhada no espaço, a primeira de um empresário na história, por meio da SpaceX, de Musk. Isaacman foi indicado pelo sul-africano, companheiro de investimentos no desenvolvimento de trajes para astronautas e outras inovações para quem pretende andar pisando em estrelas.
O risco, mal dissimulado, embora seja preciso esperar para ver o que vai acontecer: o cancelamento do Sistema de Lançamento Espacial, de cunho governamental, preterido pelas funcionalidades de um veículo propulsor, o Starship, de… de… de Elon Musk. Teme-se ainda que toda a engrenagem funcione pela conquista de Marte, e não mais da Lua, porque o dono do X e da Tesla anda apaixonado pelo planeta vermelho, e ele estará sempre no ouvido de Trump. Para Musk, dado a frases de efeito, fanfarrão a não mais poder, “haverá uma civilização humana em Marte dentro de trinta anos”.

Em que pese os obstáculos da política, a desconfiança com Trump e Musk, em que pese Marte estar logo ali, a promessa ainda é a Lua. A contagem regressiva recomeçou. A humanidade certamente voltará a caminhar pelas bandas de lá, em eterno fascínio. Em 1902, no curta-metragem Viagem à Lua, o cineasta francês George Méliès pôs um grupo de cientistas para ser recebido como inimigo pelos habitantes locais, os selenitas. A imagem da nave espacial espetada em nosso corpo celeste de predileção é uma das mais conhecidas do cinema, onírica. É assim também o desejo de voltarmos a viver no mundo da Lua.
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2025, edição nº 2925