Há um fascínio especial e permanente com o Concorde — o avião comercial supersônico que cortou os céus de brigadeiro entre meados dos anos 1970 e o início dos anos 2000. A aeronave, uma parceria do Reino Unido e da França, com bandeiras da British Airways e da Air France, é a um só tempo passeio nostálgico e desafio tecnológico. “Lírica, maravilhosa, inacreditável”, disse o banqueiro americano Leo Erman ao definir a primeira viagem de passageiros acima da barreira do som, a mais de 2 170 quilômetros por hora, em 21 de janeiro de 1976 — acompanhada por um repórter de VEJA, no trajeto entre Paris e Rio de Janeiro, em apenas seis horas de travessia. A bordo — apesar do exíguo espaço entre os assentos — era luxo só, com passagens a 10 000 dólares. No cardápio, caille en gelée e vinho Château Pichon Lalande, safra 1970, além de baldes de champanhe. E pasme: fumava-se, e muito.
Da janela, a cerca de 18 000 metros de altitude via-se a curva da Terra — para espanto, hoje, dos terraplanistas de plantão. Do ponto de vista de avanço tecnológico, para além da velocidade, havia um calcanhar de aquiles: o estrondo inaceitável do pássaro de alumínio. O ruído chegava a 105 decibéis, o equivalente a um trovão ou uma sinfonia de motosserras. Ao sobrevoar os oceanos, apesar dos evidentes danos para a fauna, aceitava-se o barulhão. Na proximidade das cidades, não. O nó auditivo é que, a rigor, dadas as necessárias pressões ambientais, fez o Concorde pousar para sempre. No ano 2000, um acidente — o primeiro e único — no aeroporto parisiense Charles de Gaulle, com 113 mortos, deu início ao epílogo da aventura da “máquina do tempo”, como muitos o chamavam. E então, em 2003, parou de decolar.
Aquela era mágica parece estar voltando — agora emoldurada por magníficos saltos de engenharia aeronáutica. Há duas semanas, a Nasa, a agência espacial americana, em parceria com a Lockheed Martin, revelou ao mundo, em voo inaugural, o X-59, o filho crescido do Concorde. O objetivo principal: ser mais silencioso. Não por acaso, o codinome do projeto é QueSST, o acrônimo para Quiet SuperSonic Technology, ou Tecnologia Supersônica Silenciosa. O que se pretende — e o voo de agora foi bem-sucedido — é baixar o ruído a 75 decibéis, dentro das normas, equivalente ao ronco do motor de um carro a combustão. Uma outra empresa americana, a Boom Technology, desenvolve trabalho semelhante, com o Overture, previsto para subir em 2030, mas que já tem encomendas feitas por companhias como a United, a American e a Japan Airlines. “O lançamento do X-59 é um marco para alcançar a meta que buscamos, a de controlar o estrondo sônico”, disse Catherine Bahm, gerente da equipe de desenvolvimento.
É vitória do design — com aeronaves mais longas e mais finas, nas quais o nariz representa um terço do tamanho do veículo. Mas é conquista também da adaptação de motores, afeitos a “espalharem” as ondas de choque, instalados na parte superior do canudo de titânio e não inferior, como de praxe. Quando um avião voa acima da velocidade do som, as moléculas de ar não conseguem escapar para os lados — o estardalhaço se origina na ponta e termina na cauda. O efeito contínuo, como num túnel, é ensurdecedor para quem está no chão. Por isso, celebra-se a revolução silenciosa da Nasa e seus pares. “O X-59 pode soar como um trovão distante no horizonte ou como alguém fechando a porta de um carro na esquina”, exagera Craig Nickol, conselheiro sênior da Nasa. A resposta sonora, aceno ao ambientalismo, para não incomodar os vizinhos lá embaixo, ofusca um outro dado fascinante: o X-59 promete ser duas vezes mais rápido do que o Concorde, o que representaria voo de apenas três horas entre Paris e Rio de Janeiro. “A busca de velocidade — ao lado do alcance e da capacidade de levar passageiros ou carga — foi sempre sexy”, diz Gianfranco Beting, consultor de aviação, publisher da revista Flap. “A rapidez é busca inerente da raça humana, está no assombro com o liquidificador, na corrida do cãozinho e do cavalo, no carro e no avião.”
As tais três horas hipotéticas entre a Torre Eiffel e o Cristo Redentor são um período curtíssimo, mas suficiente para a estripulia um tantinho cleptomaníaca de famosos naqueles anos dourados: diz a lenda, nunca negada, que Andy Warhol surrupiava os talhares de prata desenhados por Raymond Loewy sempre que viajava de Concorde. E, a bem da verdade, ainda hoje é possível comprar no site de vendas eBay produtos oferecidos a bordo com pompa e circunstância e agora revendidos na maior cara de pau. Na nova temporada de supersônicos — seja com o X-59, seja com o Overture — o melhor seria, quietamente, à margem dessa postura torta de levar o que não é seu, ficar com o comentário do designer britânico Terence Conran sobre o Concorde, e que bem poderia ser aplicado à nova geração de aeronaves: “É o mais bonito e emocionante objeto industrial feito pela mão do homem”.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879