O economista e cientista político israelense Noam Bardin comprou para si um desafio e tanto: solucionar o travado trânsito das metrópoles. O início de sua empreitada se deu em 2008, quando lançou o aplicativo Waze, com o objetivo de mapear com eficácia as ruas das cidades de Israel. Em 2011, o projeto se expandiu e o programa se transformou no que conhecemos hoje: uma mescla de GPS com funcionalidades de redes sociais: os próprios usuários alertam se há trânsito (ou outros problemas) nas vias. Dois anos depois, o sucesso chamou a atenção do gigante americano Google, que comprou a startup por cerca de 1 bilhão de dólares. Hoje, 115 milhões de motoristas em todo o mundo se apoiam no Waze para circular. O Brasil é o quinto maior mercado global. No começo deste mês, Bardin, que continuou no cargo de CEO, veio ao Brasil para promover sua nova meta: popularizar o Carpool, sistema de compartilhamento de carros embutido no aplicativo, um modo de adiar o caos no tráfego urbano. Bardin falou a VEJA no escritório da Google em São Paulo.
As novas tecnologias, como as do Waze, que unem recursos de GPS com os das redes sociais, podem transformar o cotidiano das metrópoles? Sim. Há uma transformação que talvez seja o maior desafio tecnológico de nossa geração, equivalente ao desenvolvimento da internet, ou mesmo da bomba atômica. São os carros autônomos — e eles só verão a luz do dia se usarem ao máximo as ferramentas de geolocalização e de troca de informações. Os autônomos representam uma inovação que parece estar logo ali, na esquina, prestes a acontecer, mas que na prática deve demorar para vingar por completo. Antes deles, contudo, haverá a eletrificação dos carros. Enfim, antes de termos veículos sem motoristas, veremos uma mudança brutal no modelo de abastecimento, com a redução do uso do combustível fóssil.
E por que tanta demora com os carros autônomos? A tecnologia não está mais do que madura? Para começar, existe o desafio regulatório. Quem se torna responsável pelo quê nas ruas tomadas pelos autônomos? Depois, há a dificuldade da produção, pois adaptar as fábricas será um problema enorme. Além disso, ainda falta estabelecer um modelo de negócios. Quem é o concorrente do carro autônomo? O taxista, o motorista de Uber, que fornecem serviços baratos. Do ponto de vista econômico, os automóveis automatizados valerão os custos? São perguntas que precisam ser feitas.
“O carro autônomo representa o maior desafio tecnológico de nossa geração, equivalente ao desenvolvimento da internet, ou da bomba atômica”
Mas quanto tempo, afinal, levará para vermos veículos autônomos pelas ruas e avenidas das grandes cidades do Brasil, por exemplo? Algumas décadas, pelo menos. Já existem modelos por aí, mas em situações controladas. E eles não estão disponíveis para a população em geral.
Talvez tenha havido exagerada celebração da chegada dos autônomos. Não seriam necessárias antes adaptações tecnológicas? Sim. Nesse ponto, na verdade, ninguém sabe ainda qual será o modelo de autônomo que vingará. Antes de tudo é preciso garantir 100% de eficiência sem um humano na direção. Teoricamente, facilitaria se os governos municipais participassem da implementação, instalando sensores pelas ruas, que ajudariam a guiar o computador dos automóveis. Contudo, não podemos contar com esse esforço por parte do poder público. Por isso, o caminho será fazer com que o veículo “enxergue” como um humano. Em vez de reagir a estímulos de outras tecnologias, o autônomo deverá, por si só, verificar se o semáforo está vermelho ou verde. Só quando isso ocorrer é que se poderá imaginar uma profusão de carros guiados por inteligência artificial.
Desenvolvedoras e fabricantes desses modelos gostam de dizer que eles solucionarão todos os empecilhos do tráfego urbano. Compartilha desse entusiasmo? De nada adiantará enquanto houver carros em demasia nas ruas, autônomos ou não. É fundamental, definitivamente, pôr mais gente dentro dos veículos. Por isso o Waze aposta na funcionalidade do Carpool, que realiza a intermediação de caronas por meio do aplicativo. O futuro está nessa solução, não tenho dúvida.
Mas a falta de segurança nas grandes cidades, especialmente em países mais pobres, com desigualdade social, como o Brasil, não pode ser um obstáculo para a carona? No começo, as pessoas serão resistentes. Mas logo notarão as vantagens. Foi assim com o Airbnb. De início, perguntavam-se: “Como alguém aceitará um estranho dormindo em sua casa?”. No fim, todos se adaptaram, e virou um sucesso global. A questão central é que, sem o compartilhamento de carros, se continuarmos como hoje, o trânsito vai piorar exponencialmente, até a insustentabilidade do sistema.
Por quê? Já reparou que os cidadãos de quase todos os países julgam que enfrentam o pior trânsito do planeta? Essa é a sensação no Brasil, no México, em Israel, nos Estados Unidos. A impressão é resultado da urbanização.
Como assim? As cidades não foram originalmente construídas para abrigar populações tão grandes. Atrelado a isso, o bom cenário econômico depende da efetividade da forma como se transportam as pessoas. Hoje, esses elementos não convivem de maneira adequada, o que é ruim para a saúde, para a economia, para a vida. Não há outra solução senão o compartilhamento dos veículos existentes. E isso pode ser feito rapidamente, por meio do suporte das novas tecnologias. Pense de novo no Airbnb. Hotéis levaram décadas para construir, tijolo após tijolo, seus quartos. O Airbnb precisou de apenas quatro anos para ter igual oferta de quartos, apoiando-se em casas e apartamentos que já existem. Com o sistema de caronas, a lógica é similar. Um dia os carros serão, sim, autônomos e elétricos. Até lá, porém, não faz diferença. O ponto primário deve ser que, sem compartilharmos os automóveis, ficaremos parados no trânsito.
Mas de que forma esse sistema de caronas é diferente do proposto pela Uber? Para começar, leve-se em conta Nova York. A cidade americana estabeleceu um limite para o número de motoristas de Uber. Na prática, aplicativos como esse aumentaram o número de carros nas ruas. São profissionais que dirigem o dia inteiro, o tempo inteiro. É uma lógica cara e que lota as vias. Já a estratégia de caronas visa a compartilhar veículos que estariam nas ruas, de qualquer forma. Essa é a diferença. A carona não pretende se tornar fonte de renda, como no Uber. O dinheiro desembolsado serve apenas para pagar os custos da viagem.
O aplicativo Uber não teve início com objetivo similar? O método das caronas não é atalho para arranjar trabalho para ninguém. O Carpool conecta apenas pessoas próximas entre si, que moram ou trabalham perto umas das outras. Por isso é seguro. Na prática, são indivíduos de mesmo perfil socioeconômico. A lógica é bem diferente.
“O trânsito iguala todas as classes sociais, sem distinção. Não importa se você tem uma Ferrari ou um Fusca. Por isso todos querem que a fluidez melhore”
Há outras formas de facilitar a locomoção nas cidades, além da oferta de caronas? No mundo inteiro, a tendência é aumentar o custo, tanto de dinheiro quanto de tempo, de dirigir sozinho e conceder incentivos a quem compartilha o carro próprio. O trânsito, em seu cerne, é um problema econômico. Sempre que alguém dirige, a sociedade paga pelos custos, que vão desde estabelecer as leis até reparar ruas. Na prática, posso gostar de dirigir e preferir ter um automóvel só meu, mas com isso vou criar trânsito e poluição para todos. Conclusão: quanto mais despesas tiver o motorista solitário, melhor será.
Como fazer isso? Nos Estados Unidos, por exemplo, o combustível é barato e em muitas cidades há pouca oferta de transporte público. Então, todos são incentivados a dirigir. Entretanto, já estão sendo criadas formas de aumentar o custo, mesmo em termos de tempo, para quem vai sozinho no veículo. É o caso da consolidação das faixas exclusivas, dedicadas a quem está com passageiros. Assim, quem dá carona acaba tendo uma vantagem: a economia de tempo no trânsito, por poder utilizar as vias prioritárias. No passado, as cidades foram remodeladas em função dos carros, com garagens, estacionamentos, postos de abastecimento. Só que isso criou um problema enorme. Um carro típico só é utilizado durante 4% do dia. Nos outros 96%, ele fica parado. Não seria mais inteligente compartilhar todos os veículos?
Por que o motorista precisa sentir a diferença no bolso para agir de forma diferente? As pessoas não vão mudar o comportamento só para salvar o mundo. Os governos têm o papel de criar os incentivos. Se alguém tivesse estacionamento gratuito por oferecer carona, essa seria uma boa tática. Elevar o preço do combustível incentivará protestos. Todavia, talvez seja a solução para aumentar a consciência em relação aos custos coletivos de usar carros em demasia.
Meios alternativos de transporte, como bicicletas e patinetes, ajudam a solucionar essa questão? A chamada micromobilidade é uma parte, e relevante, dessa dinâmica. Mesmo com o sistema de caronas, a patinete pode ser útil, por exemplo, para enfrentar o quilômetro final, talvez aquele em que cada passageiro seguirá seu caminho. Só que é preciso recordar que, em grandes centros urbanos, a maior parte do trânsito ocorre de fora para dentro da cidade, como quando os cidadãos saem de casa para ir ao trabalho. Em São Paulo, bicicletas e patinetes funcionam muito bem para o ir e vir local. Mas não dá para pegar uma patinete e ir até o aeroporto.
Quem tem mais dinheiro topará entrar no esquema da carona ou continuará a optar por dirigir sozinho? O trânsito iguala todas as classes sociais, sem distinção. Não importa se você tem uma Ferrari ou um Fusca. No trânsito, todos estão sentados e se movendo da mesma forma. Por isso todos querem que a fluidez melhore. No Carpool, pelas caronas, incentivamos as pessoas a mudar, a conversar umas com as outras. O Brasil tem uma questão de segurança pública, mas basta testar o serviço uma única vez para perceber que seus vizinhos são parecidos com você. O aplicativo mostra quem é o motorista. Você pode escolher só andar com mulheres, por exemplo. Aparentemente, a segurança pode ser um problema, mas os usuários logo entendem que a experiência é segura. E esse é o ponto para convencer todo mundo, seja de qual classe social for, dos benefícios do compartilhamento de carros.
Publicado em VEJA de 20 de novembro de 2019, edição nº 2661