Som imersivo: tecnologia de cinema em casa e nos celulares
Proposta está revolucionando o setor; o desafio é criar um acervo compatível de músicas
O cinema começou mudo e assim prosperou por três décadas, até que, em 1927, o filme O Cantor de Jazz, com trilha, algumas falas e o canto de Al Jolson — tudo gravado em disco e sincronizado com a projeção de imagens —, deu início a uma série de inovações que até hoje não acabaram. O som na película, que substituiria o disco sincrônico, transformou Hollywood na maior força de entretenimento do mundo. Com Fantasia, de 1940, Walt Disney e a RCA deram a largada para a conquista da supremacia sonora. Já não bastava, a partir daquele ponto, a sala de exibição estar equipada com uma tela grande: ela tinha de proporcionar um espetáculo estereofônico, com som vindo do centro, da direita e da esquerda. É fascinante e irônico perceber que o cinema, silencioso por tanto tempo, tenha se tornado, ao longo de quase 100 anos, o laboratório de praticamente todas as tecnologias que seriam usadas pela indústria fonográfica para vender discos. Agora, na era do streaming, um novo sistema promete entregar ao consumidor, onde quer que ele esteja, na palma da mão, uma experiência ainda mais envolvente, como se o som viesse da própria atmosfera — trata-se do Atmos, no diminutivo em inglês.
Mas o que um sistema pode trazer de tão diferente se o som imersivo está nos cinemas há décadas? De fato, a Dolby, empresa de origem britânica fundada em 1965, parecia ter chegado ao limite quando cercou a plateia com dezenas de caixas frontais, laterais e traseiras. Dava para distinguir, por exemplo, de onde vinha o helicóptero antes de ele aparecer na tela. O desafio que restava, entretanto, era fazer com que o som passasse de alto-falante em alto-falante, proporcionando uma sensação de deslocamento inédita, além de conseguir que pairasse sobre a cabeça dos espectadores. A Dolby alcançou os dois objetivos, lançando, em 2012, a tecnologia imersiva que opera nos eixos horizontal e vertical do ouvinte, cercando-o como se ele estivesse em uma redoma.
Hoje em dia, mais de 6 000 salas de cinema estão equipadas com Atmos, inclusive no Brasil. Alguns televisores já trazem a tecnologia embutida, e barras de som apropriadas (como a mostrada na foto que abre esta reportagem) podem ser adquiridas pela internet. O inconveniente — e parece sempre haver pelo menos um — é que o conteúdo ainda é escasso. Antes da pandemia, 2 000 músicas haviam sido convertidas para o novo sistema, um número irrelevante diante de milhões de títulos disponíveis em serviços de streaming como o Spotify. A fim de aumentar a oferta, a Dolby e a Universal Music, líder no mercado, uniram-se em 2017 para montar salas de gravação e mixagem Atmos. Clássicos como Rocket Man, de Elton John, e Sgt. Pepper’s, dos Beatles, já passaram pelo processo de remixagem, que equivale a uma cirurgia de separação e reorganização de instrumentos, sem a qual o ouvinte não notaria diferença alguma.
O rico acervo de músicas brasileiras terá de passar pelo mesmo processo. VEJA conversou com João Marcello Bôscoli, um dos mais reputados produtores musicais do país. Ele conta que já montou uma sala Atmos em seu estúdio Trama NaCena, em São Paulo, e que um single remixado de Elis Regina, sua mãe, estará pronto em dois ou três meses. O produtor se mostra entusiasmado com a tecnologia e acredita que, até o fim da década, milhões de músicas serão ouvidas no novo sistema Dolby. No momento, porém, apenas duas plataformas de streaming oferecem conteúdo em Atmos: a Tidal — em smartphones com sistema Android e por fones de ouvido — e a Amazon Music, com saída de som só nas caixas Echo. O Atmos, aliás, não é um aplicativo. Seus recursos são instalados em cinemas, televisores, aparelhos de som e, agora, em celulares. Spotify e Apple surfarão a onda quando houver mais repertório.
Alguns especialistas dizem que só se consegue a plena imersão montando em casa o conjunto de sete caixas independentes, o poderoso subwoofer e os quatro alto-falantes no teto (chamado de 7.1.4). Segundo eles, uma barra de som ou fones de ouvido não se comparam a um home theater completo. Bôscoli se contrapõe dizendo que existe um abismo entre o ideal e o possível: “Todos os modelos baseiam-se na psicoacústica, que trabalha com as ilusões de áudio. Atmos é o melhor que se pode ter em dispositivos móveis”, diz ele. Tendo em vista que hoje a maioria das pessoas consome música em celulares, faz sentido que a indústria aposte suas fichas neles. Afinal, a inovação costumava nascer no cinema para depois entrar em casa. Agora ela anda com as pessoas.
Publicado em VEJA de 7 de abril de 2021, edição nº 2732