Nos jogos eletrônicos não há game over. Quando um título de sucesso parece chegar ao fim da linha, do nada, quase como mágica, brota uma novidade. Faz parte do mecanismo de uma indústria que faturou quase 190 bilhões de dólares em 2023, o dobro das bilheterias de cinema. Profissionais do mercado apostam em pequena queda agora em 2024, resultado da desaceleração da pandemia, que de algum modo tirou as pessoas de dentro do quarto e do sofá da sala.
Contudo, tire o cavalinho da chuva quem apostar em derrocada do negócio — ao contrário. Um exemplo de vitalidade é um novíssimo fenômeno, o Palworld, que em apenas três dias vendeu mais de 4 milhões de cópias. É cifra extraordinária. A premissa da diversão, produzida pelo discreto estúdio japonês Pocket Pair, é simples. O jogador é lançado em um mundo hostil, sem lenço nem documento, e precisa encontrar maneiras de sobreviver. A partir da coleta de elementos dos cenários, aprende tecnologias que facilitam a construção de abrigos e amealha armas e esferas usadas para capturar os seres únicos do universo imaginário, os Pals. Com a ajuda dos bichinhos, é possível combater seres maiores e desafiar outros praticantes. O grande apelo, no entanto, está na semelhança dos Pals com os populares Pokémons. A inspiração é tão evidente que não demorou para o Palworld ser carinhosamente apelidado de “Pokémon com armas”.
A presença de armas é aceno para o espírito de nosso tempo. Alguns dos principais jogos competitivos da atualidade têm o combate bélico como premissa principal. A artilharia pressupõe indicação para adultos, e não para crianças. “O Palworld une o colecionismo de Pokémon com a mecânica de tiro e um vasto mundo aberto, ainda por ser criado”, diz Vicente Martin, professor do curso de Jogos Digitais da PUC de São Paulo. “Essa combinação fascinante atrai interesse.”.
É comum, porém, que do sucesso repentino brotem questionamentos, numa sociedade de ritmo tão frenético e efêmero. Os profissionais do Pocket Pair foram acusados de usar Inteligência Artificial (IA) no desenvolvimento dos personagens, embora nada tenha sido provado. O recurso de IA seria atalho para a cópia, o plágio. Colaborou para alimentar a suspeita uma série de postagens do presidente da companhia na rede X, em 2021, nas quais ele exibia uma coleção de diferentes figuras de Pokémon geradas por robôs artísticos. Depois, em 2022, a empresa lançou o AI: Art Impostor, título obscuro em que um sistema de IA criava desenhos.
Inexistem provas, mas o bode está na sala. A plataforma Steam, onde o Palworld é comercializado, exige que o uso de IA seja discriminado de forma evidente. A Nintendo, inventora do Pokémon, ainda não se pronunciou. “Hoje, estamos em uma zona cinzenta”, diz Martin. “Mas o debate sobre uso de IA na indústria de games merece ser feito agora, pois suas implicações no futuro podem ser grandes.” As inspirações valem, e absolve-se a série Digimon, de 1999, evidentemente baseada no Pikachu e sua turminha do barulho.
Tudo somado, a estridência do Palworld acende a fogueira de uma das grandes discussões do século XXI: até onde vai o limite da propriedade intelectual diante de tantas traquitanas prontas para replicar o que está ao lado? Como vai demorar muito ainda para que desponte um veredicto — os animaizinhos amarelos bebem daqueles dos anos 1990? —, cabe ficar com uma frase incômoda do psicoterapeuta suíço Carl Jung (1875-1961): “Todos nós nascemos originais e morremos cópias”.
Publicado em VEJA de 16 de fevereiro de 2024, edição nº 2880