Quando teve sua conta temporariamente suspensa do Twitter, em novembro de 2016, o ativista americano Richard Spencer postou um vídeo no YouTube em que acusava a rede social de “expurgar pessoas com base em suas opiniões” por meio de “stalinismo empresarial”. No mesmo depoimento, aproveitou para dizer que abriria conta em outro site: “Existe o Gab. Será para lá que iremos”. Líder do movimento National Policy Institute, Spencer é uma das mais conhecidas vozes dos supremacistas brancos nos Estados Unidos. No Gab, que havia sido lançado naquele mesmo ano, ele encontrou espaço para publicar o que quisesse — incluindo mensagens de cunho racista, que não seriam permitidas no Twitter ou no Facebook.
De lá para cá, a chamada extrema direita americana, que alguns chamam de alt-right, começou a migrar para o Gab — em massa. O diferencial do site, que se vende como “a rede social da liberdade de expressão”, é que lá tudo, literalmente tudo, é permitido: do discurso de ódio ao compartilhamento de nudes, mesmo sem o consentimento de quem foi retratado. A novidade é que, neste ano, a coqueluche da extrema direita dos Estados Unidos passou a conquistar um número crescente de brasileiros incomodados com as regras civilizatórias das redes sociais mais populares.
Comparado aos 2 bilhões de usuários do Facebook ou aos mais de 300 milhões do Twitter, o Gab — que tem como símbolo um sapo, animal que, com a difusão de memes, passou a ser associado, na internet, à alt-right — é nanico. O site possui cerca de 750 000 cadastrados. Até as eleições deste ano no Brasil, quase todos os usu ários do Gab eram americanos. Desde junho, cerca de 150 000 brasileiros se inscreveram na rede (antes, eram tão somente 25 000). O que teria provocado tamanha adesão?
A resposta é simples. Em 2018, Twitter e Facebook se lançaram como nunca na tarefa de deletar perfis que disseminassem notícias falsas e ódio, caracterizado sobretudo por posts racistas e xenófobos. Uma das preocupações de ambas as redes era justamente evitar que tais práticas pudessem interferir no pleito brasileiro. No início deste ano, Mark Zuckerberg, CEO e fundador do Facebook, garantiu que em 2018 o site estaria “mais bem preparado” para lidar com a questão, em comparação com 2016, durante a campanha presidencial nos Estados Unidos — na qual a disseminação de fake news atingiu um estágio nunca antes registrado. O Facebook chegou a contratar funcionários só para monitorar perfis brasileiros. O Twitter fez o mesmo. Resultado: em julho a empresa criada por Zuckerberg revelou ter deletado 196 páginas públicas e 87 perfis individuais que descumpriam as regras, quase todos ligados à direita radical brasileira. No Twitter, foram suspensas contas de nomes como os blogueiros conservadores Gabriel Pinheiro, Bernardo Kuster e Allan dos Santos. Em todo o mundo, a rede diz ter excluído 9 milhões de usuários por motivos semelhantes no último trimestre. Para onde eles migraram? Para o Gab.
150 000 brasileiros ingressaram no site desde junho, principalmente durante as eleições
30% do tráfego de dados da página é proveniente do Brasil. A maior presença ainda é dos EUA
A grande maioria dos brasileiros novatos no site é formada por apoiadores do presidente eleito Jair Bolsonaro. O fundador da rede, o texano Andrew Torba, intuiu isso. “Quando Bolsonaro se juntar ao Gab, o Twitter vai morrer no Brasil e a mídia entrará em pânico”, disse ele em setembro, num post no próprio perfil. Poucas semanas depois, o então candidato à Presidência publicou pela primeira vez no site.
Para Torba, sua rede social atrai “naturalmente” indivíduos alinhados à extrema direita no espectro político. Disse ele numa de suas postagens: “Essas pessoas estão sendo censuradas em todos os outros lugares. O Gab permite que qualquer um entre e fale livremente. É natural que aqueles que estão sendo silenciados entrem antes”. Acerca dos bolsonaristas expulsos de Twitter e Facebook, escreveu: “Os brasileiros estão sendo censurados pelas plataformas do Vale do Silício”.
Mesmo o Gab sendo um site de um público de nicho, sua falta de regras já demonstrou efeitos colaterais drásticos. No dia 27 de outubro, o americano Robert Bowers, de 46 anos, invadiu uma sinagoga em Pittsburgh, nos Estados Unidos, e atirou nos fiéis que acompanhavam o culto. Segundo testemunhas, enquanto disparava, ele gritava: “Todos os judeus devem morrer!”. Matou onze pessoas, no maior ataque antissemita da história dos Estados Unidos. O que o Gab teve a ver com isso? As investigações policiais sugeriram que foi nessa rede que Bowers encontrou motivação para seu ato trágico. O criminoso mantinha um perfil cheio de insultos antissemitas. Sua autodescrição trazia a frase: “Os judeus são filhos de Satanás”. No site, encontrou uma comunidade com orientação semelhante. No círculo de contatos que criou, o atirador ganhou apoio de neonazistas.
Depois da divulgação do conteúdo das postagens de Bowers, empresas que forneciam serviços ao Gab cancelaram seus contratos — entre outras, tomaram essa providência o PayPal, o GoDaddy e a Microsoft, responsáveis, respectivamente, pelos pagamentos, domínio e hospedagem do site de Andrew Torba. O aplicativo da marca também foi banido das lojas virtuais da Apple e do Google. O movimento de repúdio levou a página a sair do ar. Contudo, Torba conseguiu levantar a promessa de investimentos de 5,6 milhões de dólares para continuar na ativa e recuperou a rede. Para ele, sua empresa é a “mais censurada da história”. Para outros tantos, parece não passar de um bunker que acolhe e divulga manifestações insultuosas de desrespeito e intolerância.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610