Xiaomi lança primeiro smartphone com lentes fotográficas líquidas
A novidade poderá representar uma revolução no jeito de captar imagens
Entre os desafios da robótica, termo cunhado pelo escritor russo-americano Isaac Asimov no conto de ficção científica Círculo Vicioso (1942) para definir a ciência em torno dos robôs, está a possibilidade de emular mecanicamente órgãos humanos. Tome-se como exemplo o olho. Trata-se de um fascinante conjunto de nervos, músculos e gordura capaz de receber imagens que depois são transportadas para o cérebro, que então dará sentido a elas. A fotografia mecânica e, mais tarde, a fotografia digital reproduziram a capacidade de ver e registrar um cenário, um personagem ou uma situação qualquer com a máxima fidelidade possível. No fim de março, o gigante chinês Xiaomi deu um passo adiante ao apresentar o smartphone Mi Mix Fold. À primeira vista, o aparelho chama atenção por sua tela dobrável de 8 polegadas, mas o produto traz também outra inovação: é o primeiro celular a adotar uma tecnologia chamada de lente líquida.
Como nas melhores ficções de Asimov, a ideia por trás das lentes líquidas está em reproduzir bionicamente as reações do globo ocular para colocar em foco com mais rapidez uma imagem qualquer — esteja ela perto ou longe. Na prática, elas são pequenas bolhas contendo uma composição de água e óleo que muda de forma de acordo com a intensidade de luz aplicada à sua superfície. Essas mudanças ocorrem em frações de segundos, o que as aproximam ainda mais das características intrínsecas do olho humano. É extraordinário.
No smartphone da Xiaomi, a lente funciona como um zoom óptico de três vezes (segundo a empresa, o número aumentará para trinta vezes com “aprimoramento digital”) e como uma lente macro, para tirar fotos nítidas de objetos a até 3 centímetros de distância. Pode-se, portanto, fotografar detalhes de perto e registrar rios e montanhas magníficos a quilômetros de distância. Segundo a fabricante, as tais lentes oferecem alta taxa de luminosidade e são extremamente resistentes.
O resultado dessas combinações é o que interessa aos consumidores: as lentes líquidas eliminam uma série de componentes, que se tornam dispensáveis. É como se um fotógrafo das antigas, com aqueles coletes ou mochilas repletos de lentes para diferentes funções, de repente trocasse todo o equipamento por uma lente única, com alguns poucos acessórios extras, diminuindo consideravelmente o peso que carregava.
As lentes líquidas surgiram há pelo menos uma década, com aplicações em outras áreas, como na indústria e medicina. Hoje em dia, são empregadas, por exemplo, nos sensores de imagem utilizados em linhas de produção automatizadas, para ler códigos de barras e em cirurgias por laparoscopia, em que sondas atingem locais inacessíveis aos médicos, e até em drones, como o Ingenuity, da Nasa, que recentemente fez o primeiro voo autônomo em Marte. A sacada da Xiaomi foi instalar a sofisticada tecnologia em um aparelho que, segundo as estatísticas recentes, é peça onipresente e está nas mãos de 3,8 bilhões de pessoas ao redor do mundo — um pouco menos da metade da população mundial. A vida hoje, goste-se ou não, acontece nos smartphones.
A Xiaomi começou a vender o Mi Mix Fold na semana passada. Por enquanto, ele estará disponível apenas no mercado chinês, com preços que variam de 1 530 dólares (8 520 reais), para o modelo com 12 gigabytes de RAM e 256 gigabytes de armazenamento, a 2 000 dólares (11 140 reais), para a versão especial com acabamento em cerâmica, 16 gigabytes de RAM e 512 gigabytes de armazenamento. Não há previsão para a chegada do aparelho ao Brasil.
A inovação foi bem recebida. Logo no primeiro minuto depois de seu lançamento, informou a fabricante, foram vendidas 30 000 unidades, o que gerou uma receita equivalente a 61,3 milhões de dólares (343 milhões de reais). Evidentemente a Xiaomi será seguida por concorrentes, como a Huawei, que tem planos para lançar em breve a sua versão de smartphones com lentes líquidas. A Apple e a Samsung, que lideram o mercado global de celulares, esperam os primeiros resultados de aceitação popular para então decidirem se incorporam a novidade — é muito provável que o façam, para não perder o trem. “As lentes líquidas representam uma revolução”, resume Marcelo Zuffo, professor do Departamento de Engenharia de Sistemas Eletrônicos da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo. O futuro imaginado por Asimov, enfim, aparece diante de nós — mas é apenas o começo. Afinal, outro dia mesmo, em 2007, o iPhone era só uma ideia a rondar a mente de Steve Jobs e os laboratórios da Apple.
Publicado em VEJA de 28 de abril de 2021, edição nº 2735