Os tropeços de marcas que sofrem para se adequar aos novos tempos
Elas lutam para dissociar a sua imagem dos valores ruins do passado e são alvos até de boicotes
Durante muito tempo, a publicidade foi acusada de reforçar estereótipos de raça e gênero ao ocultar em suas campanhas a diversidade do tecido social. Nos últimos anos, contudo, a indústria do marketing decidiu trocar a surrada estratégia por ações comerciais mais abrangentes. Uma das pioneiras foi a marca de sabonetes Dove, que lançou uma propaganda estrelada por mulheres que estavam longe dos padrões consagrados de beleza. Poderia ter começado ali um novo marco estético, com anúncios mais heterogêneos, mas nem todos os consumidores parecem dispostos a aceitar as mudanças da sociedade. Há algumas semanas, uma campanha da cervejaria Budweiser protagonizada por uma mulher trans irritou parcela considerável dos fãs de seus produtos.
Dylan Mulvaney é uma influenciadora com 1,8 milhão de seguidores só no Instagram. Carismática, ela compartilha detalhes de sua rotina nas redes sociais, assim como muitas outras celebridades digitais, mas com uma diferença significativa: seu conteúdo é baseado no processo de transição de gênero. A forma de compartilhar a experiência criou um público fiel e, consequentemente, chamou a atenção do mercado publicitário. Mulvaney foi contratada para estampar sua imagem nas latinhas de cerveja, o que revela a nobre intenção da empresa em dialogar com os novos consumidores. No entanto, a investida deixaria um gosto amargo. Um boicote promovido pelos fãs da marca levou à queda de 17% nas vendas da Budweiser e à perda de 6 bilhões de dólares em valor de mercado. Encurralada, a companhia tirou a campanha do ar.
Mais do que um caso isolado, o episódio mostra a dificuldade de empresas identificadas com os valores do passado para se adequarem aos novos tempos. Em 2019, a Gillette lançou um comercial questionando comportamentos masculinos tóxicos. A campanha recebeu uma enxurrada de comentários negativos. Em 2022, a Volkswagen anunciou o Novo Polo em uma postagem nas redes sociais. O casal gay que estrelava o anúncio gerou reação inédita nas contas da montadora. Milhares de comentários se dividiam entre congratulações e insinuações homofóbicas.
Os exemplos não cessam nem é preciso limitá-los a certas bandeiras. No início de 2023, o CEO da Harley-Davidson anunciou investimentos em frotas elétricas. O que deveria ser um fato positivo e condizente com o momento de discussões ambientais causou saudosismo precoce entre os fãs, que afirmaram não admitir uma Harley sem o seu conhecido, e controverso, ronco gerado pelos motores a combustão. “As rejeições não têm a ver necessariamente com os conceitos das campanhas”, diz Noah Scheffel, consultor em diversidade e liderança inclusiva. “Elas dizem respeito ao ego do consumidor, que leva a mudança como algo pessoal, como se a marca o abandonasse.” A também consultora Natalia Fernandes amplia a discussão. “Não adianta aderir ao discurso da diversidade sem conhecer o perfil de sua audiência”, diz.
O dilema expõe as diferentes demandas de consumo e o papel das empresas como vozes que espelham a sociedade. Ele também evidencia a fina linha em que muitas marcas tentam se equilibrar. Ao mesmo tempo que se esforçam para se manter relevantes e sintonizadas com a nova era, em excelente postura, lutam para não deixar escapar a fidelidade dos consumidores apegados ao passado. Mas é preciso ficar claro: ao contrário do que diz o velho ditado, nem sempre o cliente tem razão.
Publicado em VEJA de 17 de maio de 2023, edição nº 2841