Haddad fala a VEJA sobre aprovação do marco fiscal: ‘Vitória do Brasil’
Ministro celebra o entendimento que permitiu votação expressiva na Câmara e afirma que as novas regras representam o início de um ciclo econômico virtuoso
Na terça-feira passada, a Câmara dos Deputados aprovou o novo marco fiscal, projeto considerado prioritário pelo governo e que segue para análise do Senado, por 372 votos a favor e 108 contra. O placar registrado deixa claro que o Congresso, dominado pela centro-direita, agora rechaça certos retrocessos na economia, como iniciativas estatizantes ou intervencionistas, ajudará o presidente da República a tirar do papel medidas de modernização do Estado, inclusive a reforma tributária, a próxima prioridade na pauta de consenso entre Executivo e Legislativo. A votação teve pelo menos três vencedores. Apesar da chiadeira de setores do PT e da desorganização da base governista, Lula obteve a sua maior conquista legislativa até agora. Já o presidente da Câmara, Arthur Lira, deu uma nova e contundente demonstração de ascendência sobre o plenário. A consagração dos dois já era de certa forma esperada. A surpresa, do ponto de vista político, ficou por conta do terceiro vencedor, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, que assumiu a linha de frente das negociações com os deputados enquanto articuladores do Planalto eram criticados em público.
Empoderado pelo presidente Lula, e com uma postura e um tom bem mais moderado que o do chefe, Haddad considera que a votação é uma vitória do Brasil ao revelar a capacidade de atores políticos, com pensamentos divergentes, de driblar a polarização e construir consensos em questões de Estado. Além de permitir a Lula investir em políticas sociais prometidas durante a campanha eleitoral, o novo arcabouço fiscal tem potencial para equilibrar as contas e controlar a expansão da dívida pública, o que, segundo o ministro, renderá uma série de dividendos. Haddad recebeu VEJA na manhã da quinta-feira 25. Em uma hora de conversa, interrompida para que ele atendesse a uma ligação de Lula, o ministro disse que há espaço para a redução da taxa básica de juros, indicou que não há veto a um debate sobre o regime de metas da inflação e prometeu levar adiante o projeto de revisar os favores fiscais concedidos pelo Estado a determinados setores da economia, coisa de 6% do PIB. A meta, segundo ele, é reduzir em 1,5 ponto percentual essa fatura, ficando em 4,5%.
Sempre de forma ponderada e conciliatória, o ministro falou também sobre política, área em que, apesar do propalado perfil técnico, está enfronhado desde sempre. Driblando a polêmica, ele chamou de “coreografia” certas manifestações de petistas contrários a posições da Fazenda, mas fez questão de elogiar o partido. Saindo do varejo para o atacado, declarou de forma enfática que o governo Lula “não pode errar”, sob pena de abrir espaço para a volta ao poder de um projeto autoritário, que estaria enfraquecido, mas não definitivamente descartado. Derrotado no segundo turno por Jair Bolsonaro na eleição de 2018, Haddad é considerado um dos presidenciáveis do PT. Se Lula não disputar a reeleição em 2026, é visto como o favorito para suceder-lhe. Até José Dirceu, uma das figuras mais influentes na engrenagem partidária, tem enaltecido a força do titular da Fazenda. Haddad jura que não pensa no assunto. “Já vi muita gente boa tropeçar na própria ambição.” A seguir, os principais trechos da entrevista.
A aprovação do marco fiscal foi uma vitória do Congresso ou do governo? O Brasil estava polarizado demais, no mau sentido da palavra. Toda democracia tem disputa, felizmente, e o eleitorado arbitra a cada dois anos, a cada quatro anos. O problema é quando as forças políticas deixam de dialogar, deixam de conversar. O Brasil estava vivendo um momento em que as forças políticas estavam quase que sabotando uma à outra. Isso é um risco. A aprovação do marco fiscal com 372 votos mostra que existe um amplo setor do Congresso que pensa diferente, mas é capaz de perceber quando o interesse nacional precisa ser o centro das atenções. O que aconteceu não foi uma vitória que pode ser atribuída a uma parte, é uma vitória do todo que quer se reencontrar. Eu celebro como uma repactuação em torno de um projeto nacional. É colocar o Brasil em primeiro lugar. Nesse sentido, foi uma vitória do Brasil.
“Existe um amplo setor do Congresso que pensa diferente, mas capaz de perceber quando o interesse nacional precisa ser o centro das atenções. A aprovação do marco é uma vitória do Brasil”
O projeto original sofreu alterações na Câmara dos Deputados. Qual a avaliação que o senhor faz do resultado final? Sempre disse e repito: o marco fiscal deveria ser visto a partir de dois ângulos. O primeiro é o ângulo do desenho, que foi aplaudido por unanimidade, como quando nós introduzimos o regime de meta de inflação. Não vejo força política querendo abrir mão desse instrumento. O segundo ângulo são os parâmetros desse desenho. E aí é natural que, dependendo da sua visão de mundo, dependendo da sua visão de Estado, puxe um pouquinho pra cá, um pouquinho pra lá. A cada governo você vai poder fazer pequenos ajustes nesses parâmetros em relação aos resultados pretendidos. O que é bonito desse desenho é que o estado liberal cabe dentro dele, um estado mais social cabe dentro dele, um estado mais desenvolvimentista cabe dentro dele, ou seja, é um desenho que admite a pluralidade de opiniões com uma unidade em torno do objetivo pretendido, que é garantir a estabilidade social e fiscal do país.
Quais são os reflexos imediatos da aprovação desse conjunto de medidas? Se você verificar o que está acontecendo com a curva de juros futuros ao longo dos últimos dois, três meses, ela vem convergindo para aquilo que se deseja. Os juros estão caindo. A curva de juros é mais importante que qualquer outra coisa, é mais importante que a Selic hoje, é mais importante que o Boletim Focus, porque a curva de juros é o reflexo dos negócios, das transações que estão acontecendo. Então, quando você está colocando seu dinheiro na mesa, você não está fazendo simplesmente uma conjectura, você está fazendo uma aposta de que aquilo é consistente. Já observamos mudanças também em outros indicadores importantes.
“O Brasil não é uma republiqueta que precisa sair correndo atrás de uma solução em um mês. Temos que sinalizar para a sociedade, para os investidores internacionais, que estamos numa trajetória consistente”
Por exemplo? A mesma coisa está acontecendo com o câmbio, os juros e as projeções de crescimento. Elas também estão sendo recalculadas para melhor. O próximo passo é a reforma tributária. Estou muito convicto de que nós vamos ter um choque de produtividade na economia brasileira com a reforma tributária, que é o nosso principal gargalo. O Brasil não vai avançar sem enfrentar esse debate sobre produtividade. E, do meu ponto de vista, a produtividade está intrinsecamente ligada ao caos tributário. Não é possível avançar num ambiente tão hostil à concorrência justa, à transparência. Ninguém consegue planejar o longo prazo com o nível de insegurança jurídica tanto para o Fisco quanto para o contribuinte. A base fiscal tem de ser uma rocha.
O senhor vê espaço para uma queda de juros já a partir da próxima reunião do Copom? Quando nós falamos isso, às vezes as pessoas tendem a entender a autonomia do Banco Central de uma maneira quase religiosa, como se fosse um sacrilégio discutir juros. O mundo inteiro está discutindo isso, e está discutindo em mesas acadêmicas, entre os investidores. É uma discussão que se faz normalmente, não ofende nem agride a questão institucional. Sabemos que tem lá os diretores, o presidente do Banco Central, que têm a difícil tarefa de arbitrar algo em um mundo conturbado. Penso que tudo concorre para uma redução da taxa de juros no Brasil. Ninguém mais está discutindo “se” deve cair. A pergunta agora é quando. A política fiscal e a política monetária precisam ter uma relação mais orgânica.
Como assim? São duas políticas ativas, e não passivas. Estamos falando de um organismo ambidestro. Os dois têm de trabalhar na mesma direção, remar na mesma direção. Essa, na minha opinião, é a visão mais moderna de política econômica. Até o final dos anos 90, não se pensava assim. A política monetária era muito mais passiva, era muito mais reativa. Hoje, o discurso dos próprios presidentes dos bancos centrais do mundo mudou muito. Trazer isso à consideração da sociedade não é de maneira nenhuma colocar em xeque a autoridade monetária. É propugnar por uma visão mais orgânica dessas duas políticas, que no fundo são uma só. A tendência mais contemporânea é de harmonizar dois braços ativos do mesmo organismo.
“No PT, todo mundo tem liberdade de falar o que pensa. Tem uma coreografia que tem de ser compreendida. Qual seria a alternativa a isso? Calar as pessoas? Isso é muito pior do que ouvi-las”
Tem havido essa harmonia com Roberto Campos Neto, o presidente do BC? Acabei de participar de uma reunião na casa do presidente do Congresso Nacional (Rodrigo Pacheco), com a presença do presidente do Banco Central, do presidente da Câmara (Arthur Lira), com representantes de praticamente todos os setores — agro, finanças, indústria, serviços e comércio. Uma mesa com lideranças expressivas de cada um desses setores. Tivemos uma conversa muito franca sobre a política econômica, e ninguém ali saiu diminuído, pelo contrário. Saiu todo mundo refletindo sobre a melhor contribuição que pode dar ao país.
Está no radar do governo debater mudanças no regime de metas de inflação? São estudos que estão sendo feitos pelo Banco Central, pela academia, e que podem resultar no aperfeiçoamento. Parece que o Brasil e a Turquia são os únicos países que adotam ano-calendário para fixar meta de inflação. Nem falei com a Simone (Tebet, ministra do Planejamento) nem com o Roberto (Campos Neto) ainda, mas tenho a percepção de que essa especificidade do nosso regime de metas não faz muito sentido. Eu quero estudar o assunto, quero pensar no assunto, quero ouvir as pessoas. A impressão que dá é que é proibido pensar no Brasil.
“Penso que tudo concorre para uma redução da taxa de juros. Ninguém mais está discutindo ‘se’ deve cair. A pergunta agora é quando. A política fiscal e a política monetária precisam andar juntas”
O governo pretende outras mudanças estruturais para reativar a economia? Quando fui convidado pelo presidente, defini meu plano de voo. Disse a ele: “Olha, nós temos um problema, que foram seis anos com teto de gastos. Tem uma pressão por gastos que nós temos de acomodar. Temos de equilibrar o Orçamento para que o senhor tenha a liberdade de corrigir injustiças sociais”. Isso tem de ser feito de maneira moderada, para que eu tenha espaço para cortar o gasto no patamar necessário. Não vai acabar o mundo se não for no primeiro ano, se for no segundo ano, porque o Brasil é grande demais, o Brasil tem reservas, o Brasil não tem dívida externa, o Brasil não é uma republiqueta que precisa sair correndo atrás de uma solução de um mês. Mas nós temos de sinalizar para a sociedade, para os investidores internacionais, que estamos numa trajetória consistente. É isso que estou fazendo.
O senhor pretende levar adiante a ideia de rever isenções, incentivos e as desonerações tributárias? Essa é minha agenda. Nós queremos que a sociedade discuta se esses favores são legítimos ou não, se eles estão revertendo em coisas positivas. Sou a favor de manter, por exemplo, o Prouni, que concede bolsas que permitem a alunos de escola pública, pobres e negros, frequentar a faculdade. Como é que eu vou fechar os olhos para isso? Agora, de 6% do PIB, que hoje é o patamar das desonerações apenas no plano federal, vamos achar 1,5 ponto percentual para cortar.
Esse pente-fino é para este ano? É permanente. Nós reoneramos os combustíveis, revertendo aquele populismo que tentou influir na eleição. Eu dizia já em dezembro que a reoneração não significaria aumento de preços, porque o dólar caindo e o petróleo caindo, como estava na nossa programação, fariam com que a reoneração fosse acomodada num cenário de queda de preço internacional e de valorização do real. Foi exatamente o que aconteceu. O governo reonerou e está comemorando a queda de preço. Quando você dá os sinais positivos, o câmbio se ajusta, os juros se ajustam. Essa é a beleza da economia.
“A curva de juros está caindo. Projecões positivas estão acontecendo com o câmbio e com o crescimento econômico. O próximo passo é a reforma tributária. A base fiscal tem que ser uma rocha”
A presidente do PT, Gleisi Hoffmann, foi contrária à reoneração dos combustíveis. Como é enfrentar a oposição do PT em determinados assuntos? No PT, todo mundo tem liberdade de falar o que pensa, o nosso partido é muito transparente, ninguém esconde nada de ninguém. E ali ela estava falando a título pessoal. Tanto é que depois eu expliquei para a executiva do PT o que ia acontecer, e as coisas mudaram de tom.
O senhor voltou a enfrentar a resistência de setores do PT na questão do marco fiscal. É desgastante a relação com o partido? Na minha cabeça, não. Eu funciono bem ouvindo opiniões divergentes. O que é importante é o seguinte: tem uma coreografia que tem de ser compreendida. É a política. Qual a alternativa a isso? Calar as pessoas? É muito pior do que ouvi-las. Então, eu ouço todo mundo, e numa circunstância política em que o Brasil está precisando de entendimento. A regra fiscal é uma das inúmeras medidas que nós vamos ter de implementar. Eu preciso passar para a sociedade que essa regra fiscal não é do PT ou da esquerda. Que uma boa parte do PT sabe que nas circunstâncias atuais a economia brasileira não prescinde de uma regra um pouco mais dura. As divergências têm de se manifestar, mas sem colocar em risco as medidas que precisam ser tomadas para o bem de todos nós.
Por que o governo enfrenta resistência do agronegócio? Do ponto de vista econômico, nunca houve diferença entre o governo Lula nos seus dois mandatos e o agro. Ao contrário: a maior expansão da produção agrícola da história se deu nos oito anos de governo Lula. O maior saldo comercial, a maior transação comercial de todos os tempos e o maior incremento das exportações. O Carlos Fávaro (ministro da Agricultura) conversa com todo mundo, é uma pessoa educada, simpática, do setor. Eu penso que ele está reconstruindo esse diálogo. Na minha opinião, a coisa só tende a melhorar. Acho que houve muito ruído. Na hora que clarear, essas coisas ficam em ordem.
“O campo democrático está muito bem representado nesse governo. É preciso dar certo, porque hoje existe uma ameaça autoritária no Brasil, menor do que existia no ano passado, mas ela está aí, à espreita”
No início da entrevista, o senhor usou a expressão “Nós precisamos dar certo”. Se algo der errado, o que pode acontecer? Quando eu falo “nós”, estou falando do campo que selou uma barreira contra qualquer projeto extremista no Brasil. De qualquer natureza: política, fundamentalista, autoritária. Uma coisa é divergir, e isso faz parte e é para isso que existe ciclo político. A outra coisa é quando você se vê ameaçado no seu próprio país, nas suas liberdades civis, políticas, nos seus direitos sociais. Isso é inaceitável num país como o Brasil. Eu entendo que é preciso dar certo esse campo, não podemos errar, porque hoje existe uma ameaça autoritária no Brasil, menor do que existia no ano passado, mas ela está aí, à espreita.
O senhor é considerado um potencial candidato a presidente no futuro. Isso de alguma forma influencia, atrapalha ou aumenta a pressão sobre o seu trabalho no Ministério da Fazenda? Atrapalharia se eu estivesse com isso na cabeça. Quando se deixa picar pela mosca azul, você se atrapalha muito. Mas não é o meu caso. Quando fui ministro da Educação, eu era ministro da Educação. Quando fui prefeito de São Paulo, era prefeito de São Paulo. E agora eu sou ministro da Fazenda. Já vi muita gente por ansiedade acabar se dando mal. Tenho a honra de ter uma missão dessa envergadura, considero isso um privilégio. Já vi muita gente boa tropeçar na própria ambição. A minha ambição é que o Brasil esteja amanhã melhor do que hoje, que as famílias estejam mais confiantes, que os investidores estejam mais confiantes, que os trabalhadores estejam mais confiantes. Esse é o meu trabalho.
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2023, edição nº 2843