Igrejas evangélicas multiplicam templos e expandem influência política
Corrente religiosa quase dobrou a quantidade de espaços para cultos na última década e foi beneficiada no recente projeto de reforma tributária
Às vésperas da votação da reforma tributária, a poderosa Frente Parlamentar Evangélica conseguiu uma importante vitória: incluiu no texto aprovado na Câmara uma emenda que garante a isenção de impostos, não só a “templos de qualquer culto”, como está previsto na Constituição, mas para todas as “associações beneficentes e assistenciais” ligadas às igrejas, o que pode abranger de casas de repouso a instituições de ensino. A inclusão foi negociada com o relator do projeto, Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), e teve o apoio do governo, por meio dos ministros Jorge Messias (Advocacia-Geral da União) e Alexandre Padilha (Relações Institucionais) — os dois primeiros são fiéis da Igreja Batista, enquanto Padilha é da Metodista. O episódio mostrou, mais uma vez, a relevância política dos evangélicos, cuja força é a cada dia mais visível na vida social, seja nas ruas (com marchas que reúnem multidões em várias cidades do país), na cultura (a Globo tem a primeira protagonista evangélica em novela, com Vai na Fé), na internet (com personalidades que mobilizam milhões nas redes sociais e nas plataformas de música e vídeo) e na mídia tradicional, onde controlam vários veículos de rádio e TV.
Uma coisa é certa: não faltarão igrejas para serem beneficiadas por essas isenções tributárias acordadas em Brasília. Um levantamento minucioso e inédito, feito com base em registros de novos CNPJs na Receita Federal, mostra que a proliferação dos locais de culto evangélico nunca foi tão grande no Brasil. Entre 2010 e 2019, o número de novos templos praticamente dobrou em comparação com a década anterior, passando de 54 000 para mais de 100 000, segundo o estudo “Surgimento, trajetória e expansão das igrejas evangélicas no território brasileiro ao longo do último século”, do pesquisador Victor Araújo, do Centro de Estudos da Metrópole. Em 2019, foram abertos em média dezessete locais de culto por dia.
O ritmo não só impressiona, como aponta para a maior transformação social recente do país. Em 1940, quando o Brasil fez o seu primeiro Censo, os evangélicos eram apenas 2,7% da população. Em 2010, esse percentual já era de 22,2%, e a expectativa é que no Censo de 2022, cujos detalhamentos ainda serão divulgados, chegue a 30%. A projeção é que superem os católicos em 2032, o que era impensável para um país que teve uma missa na sua fundação e onde, até o advento da República, o catolicismo era a religião oficial, seguida por mais de 90% dos brasileiros. A expansão evangélica impulsionou todas as correntes (pentecostais, neopentecostais e missionárias), que se beneficiaram do declínio do catolicismo, que perde 1% de fiéis por ano, segundo o IBGE. De acordo com a pesquisa Global Religion 2023, feita pelo instituto Ipsos em 26 países e concluída em maio, os evangélicos já são maioria entre os jovens (até 30 anos) no Brasil, com 30% da população, contra 26% dos católicos. Há basicamente três motivos a sustentar a expansão: a urbanização do país, a ausência do Estado em determinadas regiões e a maior agilidade em relação ao catolicismo. Para o cientista político Victor Araújo, da Universidade de Zurique, autor do estudo, o êxodo rural das últimas décadas explica boa parte do fenômeno. A escassez de paróquias nas franjas das grandes cidades incentivou muitos migrantes católicos a buscar outros espaços cristãos, que foram criados pelos evangélicos, que têm maior liberdade para abrir templos sem precisar se submeter a estruturas de comando centralizadas, como na Igreja Católica. “A descentralização facilita que as igrejas evangélicas se multipliquem e alcancem lugares aonde o catolicismo não chega, por ser uma estrutura muito hierarquizada e burocrática”, avalia. Da mesma maneira, os protestantes têm certa liberdade para adaptar seu discurso e incorporar elementos das comunidades, como o funk no Rio, ao passo que a liturgia católica não oferece a mesma flexibilidade, com missas padronizadas, orações longas e cânticos monótonos.
Outro fator que pesa é o vácuo deixado pelo Estado em áreas periféricas e setores marginalizados da sociedade, principalmente nos centros urbanos. Não por acaso, as maiores concentrações de igrejas evangélicas estão no Sudeste (São Paulo, Rio de Janeiro e Espírito Santo) e zonas de forte expansão demográfica, como Mato Grosso e Rondônia — locais com mais de sessenta templos a cada 100 000 habitantes e os estados mais próximos de concluir a transição religiosa. Um trunfo que ajuda a proximidade evangélica com sua base social é o fato de a maioria das novas igrejas ser “nativa” das localidades, com pastores formados nas próprias comunidades, o que ajuda na identificação e atração de fiéis.
Um exemplo disso é o avanço da Assembleia de Deus, no Brasil desde 1910. A denominação abriu quase 10 000 templos na última década e mais que dobrou a sua presença no país. A vertente na qual se enquadra, a dos pentecostais, também foi a que mais cresceu. Com maior capilaridade pelo país, com templos em cidades pequenas e isoladas, elas, com frequência, assumem tarefas de alfabetização, alimentação e assistência em locais com alta fragilidade social, como presídios, favelas e aldeias indígenas. As neopentecostais — como a Universal do Reino de Deus — são mais concentradas nos centros urbanos e priorizam templos em locais de grande circulação. Embora também tenham suas atividades sociais, elas investem na “teologia da prosperidade”, uma pregação focada na promessa de melhoria da condição financeira dos fiéis. Já a missionárias, que englobam antigas igrejas protestantes como Batista, Metodista e Adventista, são o subgrupo que menos cresceu. Uma das explicações é que adotam estrutura mais centralizada e hierarquizada (o que as aproxima do catolicismo).
O alargamento da base social evangélica impulsiona o seu poder político. Um exemplo: em 2003, pouco mais de cinquenta parlamentares decidiram criar uma frente para defender interesses cristãos, mas o grupo, que não atraiu nem 10% da Casa, não foi registrado oficialmente. Isso só ocorreria em 2015, quando já havia dobrado, mostrando a crescente influência política. Vinte anos depois, a Frente Parlamentar Evangélica reúne 220 deputados (42% da Casa) e 26 senadores (quase um terço) e é o segundo maior agrupamento do Legislativo, atrás dos defensores do agronegócio. Com esse tamanho, tornou-se um ator político impossível de ser ignorado. Na eleição de 2022, Lula relutou quanto pôde para fazer um aceno, mas cedeu ao lançar uma longa carta aos evangélicos em 19 de outubro, entre o primeiro e o segundo turno da acirrada disputa com Jair Bolsonaro, que tinha nesse grupo a sua mais firme base de apoio. “Posso lhes assegurar que meu governo não adotará quaisquer atitudes que firam a liberdade de culto e de pregação ou criem obstáculos ao livre funcionamento dos templos”, escreveu.
A ampliação da isenção acertada na reforma ajudou a aproximar o governo dos religiosos, mas não será suficiente. O grupo negocia a aprovação de uma PEC do deputado Marcelo Crivella (Republicanos-RJ), líder da Universal, que estende as benesses tributárias a bens das igrejas, como veículos, imóveis usados pelos pastores e produtos como microfones e cadeiras. “Toda a bancada evangélica subscreveu. Tem quarenta deputados coautores e 336 que apoiam essa emenda constitucional. Esse é o ponto principal que nós todos estamos pedindo ao governo”, afirma. Ninguém fez projeção de dinheiro, mas vale lembrar que em 2021, com o aval de Bolsonaro, o Congresso deu anistia para mais de 1,4 bilhão de reais em impostos e multas cobradas pela Receita que as igrejas não concordavam em pagar. Isso foi feito com os votos de 439 deputados (de 513) e 73 senadores (de 81). E não é só em Brasília que é feito esse tipo de aceno aos fiéis. Na semana passada, o governador do Rio, Cláudio Castro (PL), que fez fama como cantor de músicas católicas, sancionou lei que isenta de imposto estadual as contas de luz e gás das instituições religiosas.
O crescente poder político dos evangélicos não é usado apenas para obter benefícios materiais. Também embala a chamada agenda conservadora, que funciona como um contraponto à tentativa de fazer andar pautas como a legalização dos jogos ou a descriminalização da maconha e do aborto. “O que a gente quer é respeito às nossas ideologias. E o governo tem tentado se posicionar um pouco mais para o lado conservador. O aborto já é ponto resolvido. Nenhum governo, seja de esquerda ou de direita, vai querer tratar dessa pauta, porque o Brasil não aceita”, diz o deputado Cezinha de Madureira (PSD-SP), da Assembleia de Deus, que foi um entusiasta de Bolsonaro e agora se aproxima de Lula.
A separação entre religião e Estado é um princípio básico das democracias modernas. Nos Estados Unidos, os “pais-fundadores” da nação deixaram clara a separação entre Estado e igreja já na Primeira Emenda, de 1791. Um século depois, o Brasil incluiu o mesmo princípio na Constituição de 1891. Nos últimos anos, no entanto, a crescente influência religiosa fez o país flertar com essa perigosa mistura. “Brasil acima de tudo. Deus acima de todos”, dizia o slogan das campanhas bolsonaristas. Para o antropólogo Juliano Spyer, autor do livro Povo de Deus, a aproximação dos evangélicos com a direita se deu em grande parte porque Bolsonaro deu voz a uma parcela da população com quem a esquerda nunca quis ou nunca conseguiu dialogar, principalmente em torno da chamada pauta de costumes.
A aproximação, no entanto, rendeu episódios deprimentes como o envolvimento de pastores em um esquema de corrupção no Ministério da Educação, com denúncias de cobrança de propinas em barras de ouro e exemplares superfaturados da Bíblia. O escândalo levou à prisão o ex-ministro Milton Ribeiro, um presbiteriano que chegou a ser reitor do Mackenzie. Além disso, alçou ao protagonismo personagens bizarros como a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), especialistas em usar proselitismo moral, preconceitos e fake news para angariar dividendos políticos. Também causou constrangimento a exploração da fé evangélica pela ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, que na eleição transformou púlpitos em palanques. E, claro, teve pela primeira vez a ascensão de um ministro ao STF por conta de sua opção religiosa, no caso ser “terrivelmente evangélico”, como ocorreu com André Mendonça.
Os maus exemplos, é claro, não podem servir de baliza para generalizar toda uma comunidade. Nos últimos anos, é inegável que a definição “evangélico” deixou de ser exclusivamente religiosa e adquiriu uma carga política — dificilmente se fala em “eleitor católico” com a mesma frequência que “eleitor evangélico”. A generalização dos “crentes” carrega uma série de preconceitos culturais e de classe, avalia Spyer. “Entre os brasileiros de maior escolaridade, principalmente de esquerda, existe uma rejeição geral à religião, como se ela fosse o ‘ópio do povo’ e uma forma de controle social”, afirma. Por outro lado, é incontestável que existe um forte movimento fundamentalista de direita, que promove afrontas aos direitos humanos, como fez o pastor André Valadão, da Igreja Batista da Lagoinha, ao sugerir a morte de gays (veja o quadro). Segundo o deputado e pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ), um raro evangélico de esquerda no Congresso, o desafio é colocar isso em perspectiva, pois há uma diversidade na população protestante. “A extrema direita está em ascensão no mundo inteiro, e seria um reducionismo atribuir isso somente aos evangélicos”, afirma.
Essa diversidade evangélica ganha cada vez mais espaço na sociedade. Um bom exemplo é a novela Vai na Fé. Até chegar a uma protagonista evangélica, a TV Globo levou aos seus folhetins uma lista enorme de personagens estereotipados, que iam dos crentes fanáticos a fiéis dissimulados, que pregavam a virtude em público e pecavam no privado, passando por pastores de comportamento questionável e clichês variados sobre os perfis de renda e instrução dos adeptos. Em 2019, “caiu a ficha” quando a autora Rosane Svartman constatou que metade dos telespectadores das tramas das 19h era evangélica. Dai nasceu Vai na Fé, em que a protagonista Sol (Sheron Menezzes), vive uma mãe de família batalhadora, frequentadora de uma igreja neopentecostal, que, a despeito das várias dificuldades, não se desvirtua.
O fenômeno dos novos evangélicos pode ser visto ainda no sucesso estrondoso de artistas gospel, como as cantoras Isadora Pompeo (7 milhões de fãs no TikTok) e Maria Marçal, de 14 anos, cujo clipe da canção Deixa tem 31 milhões de visualizações no YouTube desde março. Há pastores que viraram celebridades tipo stand-up, como Cláudio Duarte (9 milhões de seguidores no Instagram); de estilo coach, como Deive Leonardo (14 milhões na mesma rede); e de simples pregação, como Antônio Júnior, que tem um dos maiores canais de oração evangélicos do mundo (13 milhões no YouTube). O fato é que na política, na cultura, na internet ou na vida social, o país cada vez mais depara com a sua nova cara. A multiplicação de templos é mais um indicativo desse momento.
Publicado em VEJA de 26 de julho de 2023, edição nº 2851