O polêmico remédio de R$ 15,7 milhões que pode ser liberado pelo SUS
Tratamento que altera o DNA de crianças para curar doença muscular rara foi aprovado pela Anvisa, mas há incertezas sobre riscos no longo prazo

O governo federal deu um novo passo para liberar a distribuição gratuita pelo SUS do medicamento Elevidys, destinado ao tratamento de uma rara síndrome genética conhecida como distrofia muscular de Duchenne (DMD). O preço de fábrica do remédio pode chegar a mais de 20 milhões de reais por dose, caindo para 15,7 milhões com desconto de impostos para venda ao poder público.
Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em dezembro do ano passado, o Elevidys é classificado como uma terapia gênica — isto é, uma substância que “edita” diretamente o DNA humano. Na prática, o princípio ativo (delandistrogeno moxeparvoveque) contém um vírus capaz de reprogramar as células para produzir distrofina, proteína muscular deficiente nos pacientes com Duchenne.
A distrofia muscular de Duchenne é caracterizada pela gradativa perda de força nos músculos, com os primeiros sintomas surgindo já nos primeiros anos de vida. No Brasil, as estimativas variam entre 300 e 700 novos casos por ano, praticamente todos do sexo masculino, e calcula-se que três em quatro pacientes não chegam aos vinte anos de idade — a maioria dos portadores perde os movimentos das pernas já na infância, e a morte ocorre após falha no funcionamento dos pulmões e coração.
Tratamento tem potencial de cura, mas há incertezas no longo prazo
Para familiares de pacientes com Duchenne, a chegada do inovador tratamento ao Brasil acende uma fagulha de esperança em relação a uma doença que, até o momento, não possui cura.
Ao longo de 2024, o processo de inclusão do medicamento no rol do SUS foi debatido em audiências no Senado e na Câmara dos Deputados. Nos Estados Unidos, o Elevidys foi aprovado também no ano passado para uso em crianças a partir dos quatro anos de idade, consistindo na aplicação de uma única injeção que teria, a princípio, potencial para curar o paciente pelo resto da vida.
A medicação, no entanto, vem acompanhada de preocupações sobre os possíveis efeitos colaterais a longo prazo, que ainda são desconhecidos por se tratar de uma tecnologia relativamente nova no mercado. Segundo especialistas, não há registros de morte em decorrência do Elevidys, mas as sequelas já documentadas incluem graves lesões no fígado e inflamações no miocárdio, músculo responsável pelos batimentos do coração.
“Na prática, os estudos apresentados nos EUA não foram capazes de comprovar a cura da doença, mas tiveram sucesso em recuperar a força muscular nas crianças”, explica Denizar Vianna, professor titular da Faculdade de Medicina da UERJ e ex-secretário de inovação do Ministério da Saúde.
Adoção do medicamento é válida, mas exige vigilância ativa do governo
Segundo Vianna, a escassez de dados científicos mais sólidos é comum em doenças raras, já que os tratamentos disponíveis são recentes e a amostra populacional para ensaios clínicos é relativamente restrita, e não deve necessariamente ser um impeditivo para disponibilizar a alternativa às famílias.
Nestes casos, uma solução viável é firmar um acordo de compartilhamento de riscos entre governo e indústria farmacêutica, que exige o monitoramento ativo da saúde dos pacientes que iniciam o tratamento — em caso de aumento dos riscos, o poder público pode interromper o pagamento e cobrar compensação por parte dos fabricantes. “Esse mecanismo de riscos compartilhados já é adotado em países europeus, e é ideal para compensar a incerteza nos estudos técnicos”, explica o professor.
Outro fator essencial é que o ministério busque, ativamente, fornecedores em outros países que ofereçam o mesmo tratamento a preços mais baixos. O custo estratosférico do Elevidys não passa despercebido pelos especialistas — o orçamento bilionário para tratar algumas centenas de pacientes, caso a distribuição seja aprovada, é equivalente a outros programas do ministério, como o de doenças circulatórias, que beneficiam mais de 30 mil pessoas por ano.
STF exige evidências concretas para remédios caros no SUS
A distribuição gratuita do Elevidys pode esbarrar em decisão recente do Supremo Tribunal Federal que, em resumo, exige evidências científicas mais robustas para a inclusão de medicamentos de alto custo no rol do SUS.
Segundo o entendimento da maioria do STF, a partir de votos dos ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso, é preciso ter critérios rígidos para evitar que a indústria farmacêutica “emplaque” na rede pública, repetidamente, tratamentos caros com poucos estudos concretos sobre a sua eficácia. O objetivo, segundo o colegiado, é evitar o mau gasto de recursos públicos e a judicialização excessiva do sistema de saúde — atualmente, cerca de 70 pacientes com distrofia de Duchenne já têm o direito a receber o Elevidys gratuitamente.
A Anvisa, por sua vez, argumenta que a aprovação do medicamento atende a uma população que não possui alternativas médicas, e que “a relação entre benefícios e riscos é considerada favorável, mesmo diante de incertezas”. Mesmo sem provas de cura total da DMD, o tratamento deu resultados na “melhora significativa em funções essenciais, como a capacidade de ficar em pé, caminhar e subir escadas” em crianças de 4 a 7 anos, faixa etária para a qual o Elevidys foi aprovado.
Além disso, a agência firmou termo de compromisso com o laboratório Roche, responsável pela importação do medicamento (fabricado pela norte-americana Sarepta), para “acompanhamento de 15 anos, além de estudos observacionais de efetividade e segurança baseados em dados de pacientes tratados no Brasil e globalmente”.
O aval da Anvisa ao medicamento é a segunda etapa no processo para disponibilizar o remédio pelo SUS. O próximo e último passo é a aprovação pela Conitec, comissão que avalia a incorporação de novas tecnologias ao Sistema Único de Saúde. O órgão pode vetar a liberação do Elevidys na rede pública se julgar o tratamento arriscado ou desproporcionalmente caro.