Ultraprocessados e saúde mental: uma ligação cada vez mais evidente
Estudo do impacto desses alimentos na saúde mental é um dos caminhos promissores para entender e tentar modificar quadros depressivos no país

Um dos grandes avanços recentes da clínica psicológica foi enxergar sono, alimentação e exercícios não como coadjuvantes, mas como importantes pilares do tratamento — afinal, saúde mental depende de corpo, mente, estilo de vida. E o Brasil está no centro dessa urgência: tem altos índices de transtornos de ansiedade e depressão. Hoje, psicoterapeutas antenados já entendem: a mente não dorme só, não se alimenta só — ela reage ao que entra no corpo. E uma categoria específica de alimentos — os ultraprocessados — vem ganhando destaque na literatura por seu impacto negativo na saúde mental. É um dos caminhos promissores que temos para entender e tentar modificar quadros depressivos no país.
No Brasil, atravessamos uma transição alimentar em tempo recorde. Saímos da escassez para o sobrepeso e obesidade em uma década. Foi observando esse movimento que o pesquisador Carlos Monteiro, da USP, debruçou-se sobre um fator determinante: o abandono progressivo do alimento genuínoa comida de verdade, feita em casa, dando lugar à explosão do consumo de produtos prontos, altamente industrializados. Foi aqui que surgiu a classificação NOVA, que mudou o jeito como o mundo entende a alimentação. Criada por Monteiro e pelo NUPENS/USP, a NOVA batizou o vilão moderno de ultraprocessados (UPFs).
Eles são feitos a partir de fragmentos alimentares, com doses exageradas de açúcar, gordura e sal, além de aditivos fabricados para enganar o paladar e estimular o consumo — mesmo na ausência de fome. Fazem parte dessa categoria refrigerantes, salsichas, biscoitos recheados, snacks, cereais matinais, frios processados, molhos prontos e adoçantes. Como identificar que um produto é ultraprocessado? Simples: na embalagem segue uma extensa lista de ingredientes, com nomes que você não consegue pronunciar. O que faz esses produtos se popularizarem é fácil de entender: são convenientes, rápidos de preparar e muitas vezes mais baratos do que frutas, verduras ou comidas minimamente processadas. No Brasil, cerca de 20% das calorias consumidas por adultos e adolescentes vêm de ultraprocessados — proporção menor que nos Estados Unidos (onde ultrapassa 60%), mas com crescimento contínuo em grupos mais pobres.
Apesar das críticas (algumas vindas da indústria ou de visões mais nuançadas que pedem distinções entre os UPFs), a classificação NOVA vem ganhando força e credibilidade na ciência da nutrição. Tamanha vem sendo a preocupação que especialistas propuseram passar a tratar os ultraprocessados na Saúde Pública, mais como produtos aditivos — ao lado do tabaco e do álcool.
Hoje, há ampla evidência ligando o consumo de ultraprocessados a doenças crônicas como obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e alguns tipos de câncer. Um estudo clássico conduzido por Kevin Hall, no NIH (Departamento de Saúde) dos Estados Unidos, demonstrou isso com clareza: em apenas duas semanas, participantes que seguiram uma dieta baseada em ultraprocessados consumiram cerca de 500 calorias a mais por dia e ganharam, em média, 0,9 kg. Já o grupo que comeu alimentos minimamente processados perdeu peso. As refeições tinham a mesma quantidade de fibras, sal, açúcar e macronutrientes — mas os participantes podiam comer à vontade. O único fator que diferia era o grau de processamento. O estudo mostra que os ultraprocessados não apenas têm pior qualidade nutricional, mas alteram o comportamento alimentar e favorecem o ganho de peso.
O capítulo mais recente dessa história se escreve na saúde mental: os estudos — muitos no Brasil, com extensas pesquisas — mostram, de forma observacional (transversais e prospectivos), que quanto maior a quantidade de ultraprocessados numa dieta, maior a chance de sintomas de depressão e, em alguns casos, ansiedade. Entre os destaques brasileiros, Andre Werneck e colegas publicaram estudo em que acompanharam quase 16 mil adultos por cerca de 18 meses, sem sintomas depressivos no início. O resultado? A cada 10% de aumento na participação calórica dos ultraprocessados na dieta, havia cerca de 10% mais risco de desenvolver sintomas depressivos, mesmo controlando fatores como qualidade geral da dieta. Outro dado, também do Brasil e ainda mais recente, ajuda a completar esse retrato. Em um dos maiores estudos de longo prazo sobre saúde já feitos no país, pesquisadores acompanharam 13.870 adultos por oito anos. E encontraram um padrão claro: quanto mais ultraprocessados na alimentação, maior foi o risco de desenvolver depressão — e, mais alarmante ainda: que a depressão se tornasse recorrente. Nesse estudo, depressão “persistente” significava apresentar sintomas em mais de uma fase do acompanhamento, indício de maior risco de recaídas ou cronificação. Resultados semelhantes, sempre apontando que dietas altamente baseadas em produtos UPFs são associadas, ao longo do tempo, com sintomas depressivos foram encontrados em todas as faixas etárias (adolescentes, adultos, idosos) e em países de todos os continentes.
Não há ensaios clínicos tradicionais — que são o padrão-ouro da ciência para testar causa e efeito — comparando dietas ultraprocessadas versus saudáveis quanto à depressão — algo difícil por questões éticas (já pensou em pedir que alguém siga uma dieta ruim dessas por meses, com potencial de prejudicar sua saúde mental?). No entanto, um estudo australiano recente com quase 11 mil idosos simulou esse tipo de experimento e encontrou resultados condizentes: quem consumia 4 ou mais porções diárias de ultraprocessados tinha cerca de 10% mais risco de sintomas depressivos, além da piora geral da saúde mental .
Do outro lado da moeda — em vez de testar o efeito dos ultraprocessados, testou-se o poder de uma alimentação de verdade. Apesar de ainda serem poucos, os ensaios clínicos que colocam dietas saudáveis como tratamento da depressão já oferecem sinais animadores. O pioneiro SMILES trial, conduzido na Austrália, comparou por 12 semanas um grupo que recebeu orientação nutricional para adotar uma versão da dieta mediterrânea, baseada em alimentos naturais, com outro que participou de sessões de apoio social. O grupo da dieta apresentou uma melhora significativamente maior nos sintomas depressivos — com taxa de remissão quase quatro vezes maior do que o controle. Outro experimento australiano, o HELFIMED trial, testou uma dieta semelhante, combinada ao uso de óleo de peixe. Os resultados: reduções expressivas nos sintomas depressivos e melhora sustentada na qualidade de vida. São passos iniciais — com amostras pequenas e ainda longe de formar consenso. Mas os achados são convergentes. E animadores.
Os mecanismos por trás da relação entre dieta e depressão ainda estão sendo investigados, mas já há hipóteses consistentes sobre como esses alimentos podem afetar o cérebro. Um dos principais caminhos é o eixo intestino-cérebro, uma via de comunicação bidirecional entre o sistema digestivo e o cérebro. O consumo de refrigerantes, salgadinhos, comida pronta, pães, bolos industrializados e congêneres pode alterar a microbiota intestinal — o conjunto de bactérias e outros microrganismos que habitam nosso intestino (entre outras razões porque esses alimentos costumam ser pobres em fibras e ricos em aditivos químicos). Essa alteração pode levar a um “empobrecimento” da microbiota intestinal e ao aumento da inflamação no corpo e no cérebro, afetando negativamente o humor e o comportamento. Além disso, dietas ricas em ultraprocessados podem causar picos e quedas rápidas nos níveis de açúcar no sangue, resultando em alterações de humor, irritabilidade e fadiga. O consumo excessivo de gorduras saturadas e açúcares presentes nesses alimentos também pode afetar a produção de neurotransmissores essenciais para o bem-estar, como a serotonina.
Para quem torce o nariz ao pensar que suco de caixinha nas refeições, mortadela ou peito de peru com pão industrializado à tarde, salgadinho durante a novela e miojo no jantar podem comprometer humor e saúde mental há que se refletir que o risco individual varia. Todo mundo conhece alguém que fumou até os 90 e viveu saudável, ou que devorava pacotes de biscoito recheado e continuou sadio — mas aqui não estamos falando de casos isolados. Também não estamos falando de consumos eventuais desses produtos – o maior perigo é o desenvolvimento de dietas majoritariamente compostas de UPFs. Trata-se de risco populacional: quanto mais ultraprocessados na dieta, maior a chance de desenvolver depressão. Esse é o ponto dos estudos: falam do efeito geral dessa dieta no conjunto da população. Por isso é urgente que governos usem essas evidências para agir: reduzindo impostos e facilitando acesso aos alimentos saudáveis, informando melhor o público (por exemplo sobre como ler os componentes na lista de ingredientes) e regulando a publicidade dos ultraprocessados.
Se você já enfrenta questões de saúde mental — ou tem histórico na família (maior chance de desenvolver uma condição) — incluir mais comida de verdade pode ser uma estratégia adicional valiosa, até preventiva. Sem esperar milagres (nada de pensar nas dietas sugeridas pela influencer da vez), saiba que alimentação de verdade é um dos pilares que apoiam nossa capacidade de lidar com os desafios da vida. Sim, junto com terapia, medicação (quando indicada), atividade física regular e higiene do sono.
* Ilana Pinsky é psicóloga clínica e doutora pela Unifesp. É autora de Saúde Emocional: Como Não Pirar em Tempos Instáveis (Contexto), entre outros livros. Foi consultora da OMS e da OPAS e professora da Universidade Colúmbia. Siga a colunista no Instagram: @ilanapinsky_