Tradição do Natal, o panetone, com sua massa entremeada de passas e frutas cristalizadas, sempre foi um corpo meio estranho na ceia brasileira. A primeira investida para aproximar o pão (sim, ele é um pão) natalino das preferências nacionais se deu há exatos quarenta anos, quando a Bauducco trocou as frutas por gotas de chocolate — e, afinal, quem não gosta de chocolate? O chocotone, hoje empatado em vendas com o original, foi a largada para reinvenções que, neste ano, atingiram um frenesi de criatividade: para onde quer que se olhe, há panetone de todas as cores e sabores — salgados, inclusive. “Queremos satisfazer o gosto dos clientes, e os jovens, principalmente, estão sempre atrás de novidades”, diz Alexandre Martins, diretor da Ofner, marca que tem entre suas catorze receitas o Red Velvet (veludo vermelho, em inglês). Inspirado no famoso bolo americano, esse irreconhecível panetone traz corante vermelho na massa, recheio de cream cheese levemente doce e cobertura de chocolate branco.
Nas prateleiras das lojas e mercados, escolher é um exercício de desapego. Tem panetone de doce de leite, brigadeiro, bem-casado, morango. A Cacau Show lançou o de petit gâteau, com massa de cacau recheada de chocolate cremoso, para ser aquecido antes de servir. Sob o rótulo de “natural”, o pão de Natal pode levar farinha integral, castanha e damasco. Mais heterodoxa ainda, a versão salgada adiciona bacalhau, calabresa e carne-seca, entre outros sabores. Maior produtor da América Latina e segundo do mundo, o Brasil também é o segundo maior consumidor de panetone (perde em ambos os casos para a Itália, onde ele nasceu). De novembro de 2017 a janeiro de 2018, foram vendidas aqui 39 000 toneladas da especialidade, o que movimentou 600 milhões de reais. E a previsão é de um crescimento de 8% neste Natal. O panetone foi trazido para o Brasil pelos imigrantes italianos e popularizado após a II Guerra. Neste ano, o produto brasileiro será exportado para cinquenta países, como Estados Unidos — o maior comprador —, Peru (o terceiro maior consumidor), Angola, Argentina e Japão.
O panettone, com dois “t”, foi inventado em Milão — e esse é o único consenso entre as várias lendas que rondam sua origem. A mais romântica diz que Toni, um padeiro na Milão de Ludovico, o Mouro (1452-1508), apaixonou-se pela filha do dono da padaria, criou um pão doce para impressionar o pai da amada e ecco — o pane di Toni vendeu como pão quente.
Há referências ao pão de frutas em rituais celtas em 600 a.C. e em quadros renascentistas. No século IX, o ponto alto da noite de Natal entre as famílias milanesas se dava quando o patriarca repartia o “pão grande” como sinal de comunhão. Seis séculos adiante, aristocratas e plebeus consumiam na ceia natalina o mesmo pão, o pan de ton, ou pão de luxo, feito de trigo, manteiga, mel e uva.
Fazer panetone dá trabalho. O processo leva no mínimo 24 horas e envolve etapas como alimentar o fermento, misturar os ingredientes, deixar a massa descansar, dobrá-la e assar. Para proteger a tradição, o governo italiano baixou um decreto, em 2005, que regulamenta a produção. O formato é de massa aerada de fermentação natural, base redonda e crosta crocante. Os ingredientes são farinha, sal, açúcar, ovos, manteiga, fermento natural e frutas cristalizadas em quantidade não inferior a 20% da receita total. Cedendo aos novos tempos, a norma permite outros sabores, desde que se preserve a massa-padrão. Isso mesmo: os italianos também inventam. Nas confeitarias de Roma, encontram-se opções de pistache, de creme de limão e de chocolate. Em Nápoles, foi lançado até um panetone em forma de pizza. “Mesmo assim, o original continua sendo nosso campeão de vendas”, orgulha-se Fabrizio Galla, membro da Academia Italiana de Mestres Confeiteiros. Toni, se existiu, ficaria feliz.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610