Nas últimas três décadas, uma das raras unanimidades entre economistas, empresários e governantes diz respeito à necessidade de o Brasil desatar o seu nó tributário. Em 1995, o então presidente Fernando Henrique Cardoso tentou emplacar um providencial projeto de simplificação de impostos, mas a iniciativa não foi adiante. Desde então, todos os mandatários bateram na mesma tecla: é preciso mudar o modelo de cobranças de tributos para melhorar o ambiente de negócios do país e estimular investimentos. De 2019 para cá, esse debate se intensificou, mas só andou, de fato, nos últimos meses. Na quarta-feira 25, um importante passo foi dado com a apresentação do texto da reforma tributária na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado pelo relator Eduardo Braga (MDB-AM). A previsão é que as novas regras sejam votadas em 7 de novembro. Depois, a matéria segue para o plenário e, enfim, retorna para a Câmara para a análise final. A reforma só será promulgada quando a mesma proposta for aprovada pelas duas casas. Parece um caminho inabalável, mas tudo indica que ele será — mais uma vez — lento e tortuoso.
Nas próximas semanas, as pressões setoriais e políticas tendem a ganhar intensidade, o que poderá impedir que o assunto se resolva até o final do ano, conforme promessa feita pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no início de 2023. “É possível aprovar desde que seja mantido o cronograma previsto para o Senado”, disse a VEJA Bernard Appy, secretário da reforma tributária do Ministério da Fazenda e um dos pais do texto que está sendo analisado. “Obviamente, tudo precisa estar bem alinhado com a Câmara para que, quando o texto voltar, a votação seja fácil.” Os primeiros sinais das dificuldades vieram no mesmo dia da apresentação da proposta do relator. Em nota marcada por tons de indignação, a Associação Brasileira de Supermercados (Abras) disse que a reforma poderá “impactar o preço dos alimentos, afetando principalmente a população vulnerável”. Por sua vez, Roberto Ardenghy, presidente do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), reclamou da criação de um imposto seletivo para essa atividade, algo que deverá “gerar pressão inflacionária”.
A despeito das contestações, inevitáveis em se tratando de um assunto tão sensível, a maioria dos economistas diz que a reforma é bem-vinda, apesar de não ser a ideal. Em outras palavras: é o que temos por enquanto. “Tínhamos um projeto de reforma tributária espetacular, observando as melhores práticas e experiências”, diz Maílson da Nóbrega, ex-ministro da Fazenda. “Mesmo alterado para pior pelo Congresso, vamos ganhar muita eficiência na diminuição dos custos de tributação e isso trará uma grande mudança para a economia brasileira.” Se fosse preciso resumir a reforma em uma única palavra, ela certamente seria “simplificação”. Esse foi o mote buscado desde o início — e que, em alguma medida, será cumprido.
Nada menos que 460 000 normas devem ser abolidas, número estapafúrdio que dá a dimensão do cipoal tributário que sufoca o Brasil. Além da simplificação do sistema, o texto prevê a integral desoneração das exportações, o que provavelmente tornará o país mais competitivo, e acaba com a famigerada cobrança de impostos em cascata. Também é previsto um longo período de transição para que estados e municípios possam se adequar às novas regras, sem queda de arrecadação. O novo relatório ainda propõe que o Conselho Federativo dos estados se transforme em um comitê gestor, sem ingerência política. O colegiado seria responsável apenas por assegurar a divisão correta dos recursos aos entes, tornando possível o pleno funcionamento do novo modelo de compensação de diferenças.
A reforma tributária brasileira nasceu inspirada nas melhores práticas internacionais, como a substituição de cinco tributos (PIS, Cofins e IPI federais, ICMS estadual e ISS municipal) por um único imposto sobre valor agregado (IVA) federal, outro estadual e pelo imposto seletivo. Trata-se de uma reviravolta em comparação com o sistema caótico vigente desde 1965. Tudo estaria perfeito se não fossem as excepcionalidades que elevarão a alíquota-base de impostos para aqueles que não serão alcançados por privilégios. “Nesse aspecto, a reforma preserva a desigualdade que caracteriza o sistema atual”, lamenta Maílson da Nóbrega.
Profissionais liberais como médicos, advogados, dentistas e engenheiros poderão pagar um valor reduzido de até 30% do IVA, cuja alíquota ainda não foi decidida. “Os dados da Receita Federal é que trarão os subsídios para a decisão final”, diz o senador Efraim Filho (União-PB), coordenador do grupo de trabalho da reforma tributária. Para ficar mais claro: se a alíquota padrão do IVA for de 25%, como está sendo ventilado, os profissionais liberais pagarão 17,5%. Por sua vez, setores ligados às áreas de educação e saúde terão alíquota reduzida em 60%, conforme já aprovado pela Câmara. Sem privilégio algum, estudos do Ministério da Fazenda afirmam que a alíquota do IVA poderia estacionar em 22%. Como haverá privilégios, ela deverá ser maior. “É muito difícil justificar essas diferenciações, que geram problemas de receita, contencioso e evasão fiscal”, diz Rita de La Feria, professora da Universidade de Leeds, na Inglaterra, e uma das maiores especialistas em tributação do mundo.
O mau exemplo vem justamente da Europa, que utiliza um sistema antigo de cobrança tributária, com diversos impostos, o que elevou a alíquota-padrão para cerca de 21% — ainda assim, abaixo do patamar aventado no Brasil. De La Feria lembra que, quando os políticos abrem a porteira, é difícil fechá-la, porque a boiada sempre exigirá mais benefícios. No Brasil, as exceções se dividem em três grupos. O primeiro será contemplado pela alíquota zero, em itens da cesta básica. Depois, ficarão os regimes específicos, com formato de cobrança distinta para setores como financeiro, imobiliário e de combustíveis, que serão tratados posteriormente. Por fim, sobram os segmentos que terão cobrança reduzida. Mesmo diante do desafio político, Braga acredita que será possível rever as benesses a cada cinco anos. Ao menos essa é a previsão de seu relatório.
Apesar dos defeitos e imprecisões, a reforma é tão urgente quanto bem-vinda. Atualmente, a carga tributária equivale a 34% do PIB — é o maior patamar da história. Segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação, entre os trinta países que mais arrecadam impostos, o Brasil é o que gera menos retorno para a população. Basta observar os serviços ruins prestados nas áreas de educação e saúde para confirmar as conclusões do estudo. Com atraso de trinta anos, estamos prestes a tornar o sistema tributário menos intrincado. Por isso, de preferência, é bom que o Congresso não deixe para o ano que vem o que já deveria ter sido feito há muito tempo. A economia tem pressa — e a sociedade brasileira não suporta mais esperar.
Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865