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Um atraso para o país

O garantismo e o resgate da dívida social moldaram a Constituição. No entanto, sem recursos e sem profundas reformas, um futuro sombrio nos espera

Por Maílson da Nóbrega
Atualizado em 4 jun 2024, 17h00 - Publicado em 28 set 2018, 08h00
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  • O ambiente da época da Constituição de 1988 não era o melhor para forjar as bases do nosso futuro. Havia séria crise econômica. Pouquíssimos na classe política se preocupavam com a situação das finanças públicas (ainda hoje é assim). A sociedade esperava que a volta da democracia nos fizesse um povo feliz e próspero. Tancredo Neves prometera uma nova Constituição, mas dificilmente levaria a ideia adiante. Percebia os riscos. Só que José Sarney, o vice que assumiu com a morte do presidente eleito, não possuía força política para abandonar a promessa.

    Para o jurista Ney Prado, a inspiração brasileira veio de experiências constitucionais de Espanha, Itália, França e Estados Unidos, mas adotou-se o modelo português, cuja fonte intelectual tinha sido a obra Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador, do marxista José Joaquim Gomes Canotilho. A Constituição portuguesa teve revisões quinquenais. A proposta de transição para o socialismo deu lugar à democracia econômica, e não à primazia do proletariado. A nossa foi revista uma vez, mantendo graves problemas. Na Espanha, uma comissão parlamentar elaborou o texto e negociou temas espinhosos latentes na ditadura franquista. A Constituição, admirável obra política, foi acolhida pelo Parlamento, que não pôde emendá-la. Depois, foi aprovada em referendo popular. Aqui, cada um dos 559 constituintes podia fazer propostas em comissões temáticas. Uma comissão de sistematização elaboraria o texto final. Saiu um conjunto incoerente que abrigou utopias, intervencionismo, patrimonialismo, paternalismo e corporativismo. O capitalismo foi mercadoria rara nesse balaio de desejos.

    Duas ideias predominaram: o garantismo e o resgate da dívida social. Pela primeira, haveria o máximo de direitos, para que não fossem novamente violados por um regime autoritário, como se este, caso surgisse, não pudesse revogá-los. Isso levou à invasão de áreas típicas da legislação ordinária, sujeitando a modernização a emendas constitucionais, mais difíceis de aprovar. A promessa de resgatar a dívida social era o contraponto à decisão dos militares de pagar a dívida externa “com a fome do povo”.

    Da elaboração, saiu um conjunto incoerente que abrigou utopias, intervencionismo, patrimonialismo, paternalismo e corporativismo

    Com 250 artigos, mais os setenta (hoje 114) do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a Constituição só perde em extensão para a da Índia e a da Nigéria. Já recebeu 99 emendas. A Constituição dos Estados Unidos, com 231 anos e apenas sete artigos, tem 27 emendas. A primeira alteração, a dos direitos individuais, tem dez artigos, que se contam como dez emendas. Pelo nosso critério, foram dezessete emendas.

    Ignorou-se o princípio econômico da escassez. Sem medir consequências, criou-se um Estado de bem-estar social de país desenvolvido, mas incompatível com a nossa realidade. No dizer do constituinte Roberto Campos, “a Constituição promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos”. Em 2016, o gasto social — mais da metade com aposentadorias e pensões — nas três esferas de governo atingiu 25,7% do PIB, mais do que na Alemanha (25,3%), na Noruega (25,1%) e no Reino Unido (21,5%). Para financiá-lo, elevou-se fortemente a carga tributária, que passou de 22% do PIB, em 1988, para 32%, em 2017, nível de país desenvolvido. O gasto primário da União (exclui encargos financeiros) passou de 12,6% do PIB, em 1986, para 19,5% do PIB, em 2017. As despesas obrigatórias com pessoal, previdência, saúde e educação somam mais de 90% do gasto primário da União, penalizando o investimento e outras áreas relevantes. Esvai-se a cada dia o espaço para a gestão fiscal.

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    A Constituinte foi o paraíso das corporações. Uma das mais poderosas, a do Judiciário, conseguiu indexar a remuneração de juízes federais e estaduais a 95% do subsídio mensal de ministro do Supremo Tribunal Federal. Os estados menos desenvolvidos pagam a seus magistrados o mesmo que o estado mais rico, dispondo de arrecadação bem menor. As demais carreiras pressionam por equiparações. O custo das aposentadorias se agiganta. As despesas com pessoal ativo e aposentado estão na raiz das falências estaduais. Para o advogado Joaquim Falcão, os servidores públicos têm dezesseis vezes mais chances de recorrer ao STF do que os trabalhadores do setor privado, que estão protegidos por menos artigos, incisos e parágrafos.

    Aposentadorias generosas de pouco menos de 1 milhão dos servidores federais causaram um déficit de 86 bilhões de reais em 2017. Os 34,5 milhões de beneficiários do INSS responderam por um déficit de 182 bilhões de reais. Entre 2001 e 2015, o déficit acumulado do regime previdenciário dos servidores atingiu 1,3 trilhão de reais. O economista José Márcio Camargo lembrou que eles estão entre os 20% mais ricos da população. Para ele, “o sistema de aposentadoria do setor público brasileiro é, provavelmente, o maior programa de transferência de renda de pobre para rico no mundo”.

    A União transferiu expressiva parcela de recursos aos estados e municípios, mais tarde ampliada por emendas constitucionais. Em 1987, o governo federal transferia 32% do imposto de renda e 32% do IPI a governos subnacionais (20% em 1975). Agora, são 49% e 59%, respectivamente. Se recorresse aos dois tributos para cobrir a expansão de gastos sociais, o governo federal teria de cobrar o dobro, pois metade deveria ser repassada aos entes subnacionais. Por isso, optou por contribuições, que lhe pertencem integralmente. O ICMS incorporou os tributos federais únicos sobre combustíveis, minerais e transportes. Os estados passaram a legislar sobre o ICMS, que agora pode ser alterado por 27 jurisdições. A harmonia das normas, essencial em um tributo sobre o valor agregado, desandou. Virou bagunça. O ICMS ficou insanamente mais complexo e instável. As regras mudam, em média, setenta vezes por semana. Agregando-se as contribuições federais incidentes em cascata, veio o caos. As empresas são habitualmente multadas não por deliberada sonegação, mas por ser difícil acompanhar e entender normas tão mutantes e irracionais. Subiu muito o custo para a defesa de autuações fiscais. Empresas exportadoras não recebem créditos do ICMS a que têm direito pela legislação. O sistema tributário transformou-se no principal entrave ao crescimento da economia e à competitividade dos produtos brasileiros.
    Constitucionalizou-se quase tudo, dos tipos de polícia à residência dos juízes e aos monopólios estatais de telecomunicações, petróleo, gás e energia. Passou-se a depender de emendas constitucionais para privatizar estatais e permitir a participação de capital privado nessas áreas. Medidas antes adotadas por lei ordinária demandaram penosas negociações políticas.

    O principal aspecto negativo: o surgimento de um Estado mais balofo do que em qualquer outro país de renda per capita semelhante à do Brasil

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    Ao longo de trinta anos, a Constituição tornou-se fonte de distorções na economia. Inibiu o crescimento da produtividade, que é o principal motor do desenvolvimento. No seu texto, a palavra produtividade aparece apenas uma vez; usuário e eficiência, duas vezes; garantia, 44 vezes; direito, 76 vezes; dever, quatro vezes. Xenófoba, a Constituição criou restrições ao capital externo. Para Roberto Campos, isso “discrimina o investimento estrangeiro, marginalizando o Brasil na atração de capitais. Na Constituição de 1988, a lógica econômica entrou de férias”.

    A ideia de promover profundas transformações, sem considerar seus efeitos econômicos, dominou os trabalhos. Além da elevação de gastos sociais, concedeu-se anistia de dívidas bancárias a pequenos produtores, uma violação explícita de contratos. Fixou-se a taxa de juros real (sic) em 12% ao ano. Nenhuma Constituição no mundo oficializa calote ou tabela os juros. Pouco se falou em empresa em sentido geral. Para Gustavo Franco, “há muita atenção dedicada à empresa estatal e destaque para o ‘tratamento favorecido’ à pequena empresa”. O incentivo, prossegue ele, “passa a ser, curiosamente, para as empresas permanecerem pequenas”.

    Na área salarial, foram mantidas ou criadas regras inexistentes em países bem-sucedidos. Os salários nominais não podem ser reduzidos, o que dificulta a recuperação da economia e do emprego em casos de recessão. A inflação tende a ser maior do que em outras partes do mundo. São estáveis no emprego todos os servidores públicos, cuja remuneração é hoje 67% superior à do setor privado em funções semelhantes. O salário mínimo, indexado à inflação passada, virou piso das aposentadorias do INSS. Nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma, seu valor cresceu 113,4% acima da inflação. Vem daí o agigantamento do déficit do INSS, pois os benefícios de um salário mínimo representam três quartos da despesa previdenciária.

    Os funcionários do setor público regidos pela legislação trabalhista viraram, como assinala o economista Raul Velloso, “funcionários públicos com todos os direitos e vantagens dessa categoria, especialmente estabilidade e aposentadoria integral pelo último salário”. Só na União foram cerca de 300 000 pessoas, acarretando aumentos de salários e novas carreiras mais bem remuneradas. Até hoje, diz Velloso, “os estados penam para obter da União uma ‘compensação previdenciária’, prevista em lei, para enfrentar os gastos adicionais na sua esfera”.

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    A crise fiscal inibe ganhos de produtividade e limita nosso potencial de crescimento. A principal origem dessa triste realidade são a expansão de gastos e as normas insensatas da Constituição, que pioraram posteriormente. No governo Dilma, para quem “gasto é vida”, a situação se agravou por causa de maior expansão fiscal, incluindo a transferência de 500 bilhões de reais do Tesouro para o BNDES, boa parte para beneficiar grandes empresas e forjar “campeões nacionais”.

    Deve-se reconhecer, todavia, que houve avanços sociais e políticos. Delfim Netto, outro constituinte, diz que a Constituição é “o produto de um momento de revolta da sociedade: uma reação às restrições que lhe foram impostas nas duas décadas do regime autoritário”. Para ele, a Constituição “incorporou o ideal de uma sociedade civilizada”, baseado em “um sistema que combina amplas liberdades civis com a mitigação da desigualdade de qualquer natureza”. Entusiasta da Carta, o ex-ministro do STF Ayres Britto considera que em linhas gerais ela “é de muito boa qualidade. Ela é cheia de princípios intrinsecamente meritórios”. Ele lembra os princípios da dignidade da pessoa humana, da soberania popular como primeiro fundamento da República, da cidadania como segundo fundamento e do pluralismo como quinto. “Melhor impossível para construir uma sociedade livre, justa e solidária”, conclui. A essa análise, pode-se aduzir a atribuição do status de poder independente ao Ministério Público, o qual, malgrado os excessos, tem investigado crimes de corrupção de forma competente, contribuindo para sepultar a sensação de que ricos e poderosos jamais seriam encarcerados.

    Além dos aspectos negativos aqui evidenciados, há muitos outros. O principal foi o surgimento de um Estado mais balofo do que em qualquer outro país de renda per capita semelhante. A isso se acrescem a piora do ambiente de negócios, o caos tributário, a queda da produtividade e a expansão insustentável da dívida pública, que, se não revertida, pode jogar o país no inferno inflacionário.

    Existem três formas de melho­rar a Carta. A primeira seria prosseguir com emendas constitucionais, como feito até aqui. A segunda, defendida por renomados juristas, seria convocar uma nova Constituinte. A terceira, proposta pelo constituinte Nelson Jobim, seria uma “lipoaspiração”, reduzindo os 250 artigos a apenas 25 que versem sobre “princípios”. A primeira levaria décadas, prolongando a agonia. A segunda incluiria o risco de piora, já que as corporações são hoje mais fortes. A terceira parece a mais adequada.
    A Constituição atrasou o Brasil. Sem reformá-la rápida e profundamente nos próximos anos, um futuro sombrio certamente nos espera.

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    * Maílson da Nóbrega, colunista de VEJA, foi ministro da Fazenda de 1988 a 1990

    Publicado em VEJA de 3 de outubro de 2018, edição nº 2602

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