Uma lei na direção certa
O governo sanciona legislação sobre os fundos dedicados à filantropia, reduzindo os riscos para quem quer ajudar uma causa
O infame incêndio que devastou o Museu Nacional, em setembro passado, no Rio de Janeiro, poderia ter sido evitado. É verdade que o governo federal cortou repasses sucessivamente nos últimos anos, mas havia muitos interessados em bancar projetos de recuperação, manutenção e expansão do patrimônio do museu, fosse na sociedade civil, fosse na iniciativa privada ou em organismos internacionais. Mas faltavam garantias em lei que assegurassem aos potenciais doadores que os recursos seriam efetivamente aplicados no museu, sem desvios pelo caminho. O Banco Mundial, por exemplo, iniciou conversas para uma doação generosa ao museu no fim dos anos 1990 e pediu que fossem implantadas boas práticas de governança. As negociações não avançaram. Foi preciso que a tragédia anunciada do incêndio acontecesse para que o Congresso finalmente acordasse para a necessidade imperiosa de criar um arcabouço jurídico que desse segurança aos doadores. E uma lei se tornou realidade no último dia 7, com a sanção do presidente Jair Bolsonaro, depois de uma tramitação célere no apagar das luzes de 2018.
A lei dos chamados fundos patrimoniais filantrópicos (os endowments, em inglês) tem tudo para ser um divisor de águas na forma como a sociedade brasileira lida com causas sociais. Segundo cálculos do Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), cerca de 5 bilhões de reais podem ser captados através desses fundos nos próximos anos. A projeção leva em conta uma doação média equivalente a 0,5% do patrimônio das 180 famílias mais ricas do país — o porcentual de referência vem de um raro estudo sobre o tema feito pela consultoria McKinsey em 2008.
O texto sancionado pelo novo governo estabelece uma série de regras para o funcionamento dos fundos, que são constituídos exclusivamente para investir e administrar os bens doados (dinheiro, ações ou imóveis), para que seus rendimentos sejam usados na instituição — pública ou privada — agraciada. A principal virtude dos fundos é buscar a sustentabilidade financeira com o pensamento no longo prazo. Para que isso ocorra, há uma série de mecanismos previstos: os gestores do fundo, por exemplo, precisam ser independentes da administração da instituição beneficiada, justamente para evitar o conflito de interesses.
O modelo já se provou um sucesso em muitos países onde a filantropia é mais comum e mais generosa que no Brasil. A grande referência são os Estados Unidos, onde estão os maiores fundos patrimoniais do mundo, montados por famílias bilionárias ou universidades. A Fundação Bill e Melinda Gates, criada pelo sócio-fundador da Microsoft e por sua esposa, é o maior exemplo de todos, com um fundo cujo patrimônio é estimado em 51 bilhões de dólares. A entidade se dedica a causas como melhorar as condições de saúde e combater a pobreza em países em desenvolvimento. A França aprovou lei similar à brasileira em 2008. O primeiro beneficiado foi o Museu do Louvre. Atualmente, o fundo conta com um patrimônio de 240 milhões de euros, e parte de seus rendimentos é usada para bancar projetos como a renovação do Jardim das Tulherias.
Mesmo no Brasil, instituições dedicadas a causas diversas, como a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, que zela por crianças carentes na primeira infância, ou o Instituto Reciclar, voltado ao desenvolvimento pessoal de adolescentes para o mercado de trabalho, já operam com fundos patrimoniais. Mas as entidades eram compelidas a contratar consultorias e advogados para criar as próprias regras de proteção. Mesmo assim, nada impedia que uma eventual mudança de estatuto decidida arbitrariamente pelos administradores de uma fundação, por exemplo, abrisse brechas para que os recursos ganhassem outras finalidades. Ou que contingências trabalhistas e judiciais avançassem sobre os ativos destinados à filantropia. “A nova lei oferece grande proteção sobre o patrimônio, o que dá segurança a quem decide fazer uma doação”, afirma Priscila Pasqualin, sócia do escritório PLKC Advogados.
Os efeitos práticos da novidade devem ser sentidos já nos próximos meses, ainda que uma mudança estrutural leve tempo para se assentar na sociedade. Um dos primeiros beneficiados será, não por acaso, o Museu Nacional. “Já temos assegurados recursos do BNDES para bancar a constituição de um fundo patrimonial. Depois que isso acontecer, vamos partir para a captação com as empresas”, revela Luiz Fernando Dias Duarte, vice-presidente da Associação Amigos do Museu Nacional. Fundada em 1937 pelo empresário Guilherme Guinle, a entidade é considerada uma iniciativa pioneira da sociedade civil em prol de uma causa cultural. Mas há tempos ela mal consegue arrecadar recursos na sociedade fluminense — em 2017, por exemplo, recebeu um total de 2 432 reais. “Não temos uma tradição forte de mecenato, como é comum em outros países”, afirma Dias Duarte.
A comparação internacional atesta que a prática da doação não está mesmo arraigada entre os brasileiros. Apenas 14% da população fez doações filantrópicas em 2017 (o último dado disponível), o que colocou o Brasil no 112º posto em um ranking com 146 países preparado anualmente pela organização inglesa Charities Aid Foundation (CAF, ou Fundação de Auxílio às Instituições de Caridade). Habitantes de nações da Ásia, da Oceania e da Europa estão entre os mais generosos, por esse critério — em 25 deles, mais da metade da população faz doações regularmente. “Precisamos promover a cultura da doação. No Brasil, esse ainda é um ato casuístico e assistencialista, para aliviar um sofrimento imediato”, diz Paula Fabiani, diretora-presidente do Idis. Somente eventos pontuais, como a tragédia do rompimento da barragem de Mariana, em Minas Gerais, há três anos, conseguem mobilizar um volume elevado de doações da população.
Um impulso adicional poderia vir dos incentivos fiscais para as doações. Estudos mostram que há uma correlação entre a existência dos incentivos e a propensão a doações. O texto aprovado no Congresso previa que empresas e pessoas físicas pudessem abater do imposto de renda doações destinadas a fundos que beneficiassem instituições públicas, como universidades e museus, até um teto previsto em lei, mas Bolsonaro decidiu vetar esses artigos sob a alegação de que contrariavam a Lei de Responsabilidade Fiscal. A sanção preservou o abatimento no IR apenas em doações para fundos que beneficiem instituições culturais e que sejam realizadas por meio da Lei Rouanet. A nova lei é muito bem-vinda e tem potencial para estimular a cultura de doações no Brasil, mas, para destravar de vez a filantropia, ainda há muito a ser feito — pela sociedade e pelo poder público.
Publicado em VEJA de 23 de janeiro de 2019, edição nº 2618
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