Durante 21 anos, o World’s 50 Best Restaurants, o mais prestigioso prêmio da gastronomia, privilegiou endereços europeus e americanos em seu ranking de melhores do mundo. Por anos, os espanhóis El Bulli e El Celler de Can Roca, o italiano Osteria Francescana, o dinamarquês Noma e um punhado de outras casas renomadas dividiram o topo do pódio. Em 2023, contudo, houve uma interessante virada. O campeão não fica na França nem nos Estados Unidos, mas no Peru. Comandado pelo casal Virgilio Martínez e Pía León, o Central, em Lima, chegou ao topo da lista depois de ter abocanhado o segundo lugar no ano passado. É a consagração da gastronomia peruana como uma das mais inovadoras, celebradas e saborosas do planeta — passeio entre a cultura indígena e os quase 3 000 quilômetros de litoral beijados pela riqueza das espécies de peixes do Oceano Pacífico.
É ponto pacífico: o reconhecimento de Martínez e León é a locomotiva de um movimento incansável e inteligente. A boa culinária do Peru não recorre a técnicas e ingredientes de origem europeia — os menus vivem constante mutação, ancorados na imensa biodiversidade do país. No Central, dá-se um balé cronometrado e preciso. Virgilio e sua irmã, Malena Martínez, vão a campo, provando sementes, animais e plantas e ouvindo as histórias dos povos originários. Mergulham nas raízes da cozinha local. Pía é quem comanda os fogões.
Há farto material para pesquisa e, portanto, para criações. Embora não seja tão grande, o Peru é considerado um dos dezessete países chamados de “megadiversos”, com uma das maiores variedades climáticas e geográficas do planeta. São onze ecorregiões distintas, que começam no nível do mar e sobem vertiginosamente por mais de 4 000 metros de altitude, nos Andes. Em cada microrregião há um ecossistema variado e peculiar. Além de ingredientes essenciais, presentes há séculos na culinária local (veja o quadro), há uma infinidade de elementos com os quais nem mesmo os próprios peruanos estão familiarizados.
Se fosse o caso de apontar um precursor do sucesso peruano, a ribalta estaria nas artes do fenomenal chef Gastón Acurio, pioneiro em valorizar a tradição (o ceviche de sua rede La Mar, que já teve filial em São Paulo, é de se comer ajoelhado) e elaborar pratos contemporâneos, quase desenhados (locomotiva do restaurante Astrid&Gastón, em Lima). Virgilio Martínez, é bom lembrar, é discípulo de Gastón, com quem trabalhou na Espanha. O prêmio Nobel Mario Vargas Llosa, bom de prato, embora nem tanto de copo, como sempre admitiu, não tem nenhuma dúvida, como escreveu em um artigo: “Ninguém fez tanto quanto Gastón para que o mundo descubra que o Peru, um país com tantas carências e limitações, desfrute de uma das cozinhas mais variadas, inventivas e refinadas do mundo, que pode competir sem complexos com as mais famosas, como a chinesa e a francesa”.
É batata! — doce como o camote, o tubérculo alaranjado e inescapável nos preparos limeños: pouco a pouco se constrói um extraordinário edifício, ímã também de turismo. No atual ranking World’s 50 Best há outras três casas de Lima — Maido, Kjolle e Mayta. “A vitória de Virgilio Martínez é, na realidade, uma conquista para todo o Peru”, diz o chef Enrique Paredes, do Ama.zo, restaurante de comida peruana em São Paulo que também apresenta versões de clássicos com roupagem moderna e ingredientes encontrados tanto nos Andes quanto no Brasil. Sejam bienvenidos, portanto, a uma escola gastronômica de escol, que andava escondida, mas foi globalmente descoberta, ou redescoberta, um brinde ao paladar delicado, sim, mas também a quem gosta de picância, como é a própria vida.
Publicado em VEJA de 5 de Julho de 2023, edição nº 2848