Depois da explosão na pandemia, ‘ghost kitchens’ têm futuro incerto
As cozinhas afeitas ao delivery perdem espaço para os restaurantes tradicionais
Nunca, como no período mais fechado da pandemia, louvou-se tanto uma das máximas do general e estrategista chinês Sun Tzu (544 a.C.-496 a.C.), idolatrado por empreendedores na adaptação do universo militar para o cotidiano dos negócios: “No meio do caos há sempre uma oportunidade”. E na dramática barafunda da emergência sanitária, entre tantas outras adaptações, a civilização deu um jeito de os restaurantes chegarem em casa, dada a impossibilidade de ir até eles. Foi um salto do sistema de delivery, que já existia, mas parecia destinado a viver isolado em algum escaninho de urgências. E então, com o susto da Covid-19, brotaram as ghost kitchens ou dark kitchens, as cozinhas projetadas para facilitar a produção de refeições afeitas à entrega.
O tal do novo normal, que de tão citado rapidamente virou coisa velha, incluía esse modelo de alimentação. Dele, por óbvio, nunca mais escaparíamos. Só que não. O que tendia ao lucro, sem cessar, freou de modo abrupto. O que se mostrava viável hoje é nebuloso. E viva o velho normal. O melhor exemplo da ascensão e queda do molde dos fornos e fogões preparados para o envio em domicílio é a CloudKitchens, startup de Travis Kalanick, fundador da Uber. Criada em 2016, ela foi comprada pelo empreendedor em 2018, mas só ganhou tração a partir de 2020, com a eclosão do vírus. No ano seguinte, a companhia captou 850 milhões de dólares em uma rodada de investimentos que contou com a Microsoft. Foi depois avaliada em 15 bilhões de dólares e inspirou outras empresas de modelo semelhante. Agora, a situação é outra. No fim de 2023, a startup demitiu parte da equipe e fechou alguns dos espaços — e os que ainda existem funcionam a meia-boca.
O problema é mais vasto. A tradicional rede de fast food americana Wendy’s, que chegou a ter unidades no Brasil, lançou um ambicioso plano em 2021: inaugurar 700 ghost kitchens na América do Norte e no Reino Unido. No ano passado, decidiu interromper toda a operação. Há casos ainda mais dramáticos, como o da Butler Hospitality, que operava cozinhas para hotéis e encerrou as atividades de forma silenciosa, deixando clientes e fornecedores na mão.
No Brasil, a situação é um pouco diferente, mas não escapa da decadência prematura. Em meados de dezembro, o Tribunal de Justiça invalidou a lei municipal de São Paulo que regulamentava as ghost kitchens. De acordo com a decisão, todo o processo de aprovação foi feito sem estudos técnicos e urbanísticos de impacto. Em 180 dias, a Câmara dos Vereadores rediscutirá o tema. Essas cozinhas, que no início de 2023 representavam um terço do total de opções em aplicativos de delivery, foram recebidas com reclamações por vizinhos em decorrência do barulho, da sujeira e da movimentação de entregadores.
Além do desenho operacional inadequado — não há almoço grátis —, há outra explicação, mais prosaica, para a perda de tração. Sem as restrições sanitárias, as pessoas preferem retomar o convívio social e sair para comer fora, simples e gostoso assim. É melhor a comida quentinha do que fria. O recuo, depois de tão breve vida, é constatação de que nem todas as soluções que fazem sentido na confusão resistem ao mundo como ele era. Vale lembrar uma frase do chef francês Marie-Antoine Carême (1783-1833): “Quando não tivermos mais boa culinária no mundo, não teremos literatura, nem inteligência elevada e afiada, nem reuniões amigáveis, nem harmonia social”. Não mesmo.
Publicado em VEJA de 2 de fevereiro de 2024, edição nº 2878