Durante um inventário de rotina na vasta adega do restaurante parisiense La Tour d’Argent — inspiração para o Gusteau’s do genial Ratatouille — o sommelier percebeu o sumiço de 83 garrafas. Quase nada, é verdade, entre as mais de 300 000 estocadas debaixo do lendário salão, inaugurado em 1582. Entre os rótulos levados estão safras antigas do Domaine de la Romanée-Conti, ícone da Borgonha, além de grandes nomes de Bordeaux, como Château Margaux e Château Petrus. Todos são extremamente cobiçados, conhecidos pelo alto valor que alcançam em leilões e pela qualidade excepcional da bebida que contêm. A perda foi avaliada em cerca de 1,6 milhão de dólares.
Os ladrões não deixaram vestígio. Não havia sinais de porta arrombada. Para dificultar ainda mais a investigação policial, o período em que as garrafas teriam sido roubadas é largo em demasia, pode ter acontecido entre 2020 e 2024. Sabe-se, contudo, que, da primavera de 2022 ao outono de 2023, a casa fechou para reforma. São pistas frágeis, e tudo indica a impossibilidade de recuperar o butim.
Episódios como o do Gusteau’s — ops, do La Tour d’Argent — começam a aparecer aqui e ali, de modo discreto mas preocupante. No ano passado, três gatunos de bom gosto entraram em uma loja de bebidas na Costa Brava, litoral da Espanha, quebraram os vidros de segurança e levaram nove recipientes exclusivos. A ação aconteceu durante o horário de funcionamento e foi registrada pelas câmeras de segurança, mas ninguém foi preso. O prejuízo foi estimado em mais de 100 000 euros. Uma única garrafa levada pelos criminosos, um Romanée-Conti da safra 2008, era avaliada em 25 000 euros. Também em 2023, mais de 600 garrafas de rótulos raros foram roubadas de uma loja na Califórnia por um ladrão de casaca que fez um buraco no teto. Com uma corda, ele desceu até a área de vinhos raros e, durante quatro horas, selecionou preciosidades, como um Château Petrus de 2016. No dia seguinte, o dono viu, com espanto, que havia perdido mais de 500 000 dólares. Em 2021, outro caso famoso aconteceu em Cáceres, na Espanha, quando o sommelier do restaurante de um hotel percebeu que 45 garrafas, avaliadas em mais de 1,9 milhão de dólares, haviam sido levadas. Uma ex-miss mexicana e seu companheiro foram condenados pelo crime a uma pena de quatro anos e meio de prisão.
O interesse crescente dos criminosos pelos vinhos está relacionado ao aumento constante do preço médio dos rótulos de alta gama. Há tempos, a demanda dos endinheirados pelos tesouros da Borgonha e de Bordeaux tem pressionado os valores das garrafas — desde meados da década de 2010, o preço médio subiu 45%. A pandemia, sempre ela, teve efeito ainda mais impressionante. Vinhos da Borgonha comercializados a menos de 200 euros no início da emergência sanitária, em maio de 2020, dispararam para mais de 320 euros por garrafa, um aumento de 62%, dois anos depois. Mesmo agora, com o retorno à vida normal e uma queda generalizada nos preços, a categoria mais exclusiva parece imune às flutuações do mercado. Colecionadores apaixonados têm investido altas somas para garantir lançamentos de escol.
O risco de ter uma adega roubada se junta ao contrabando e às falsificações, problemas crônicos do mundo do vinho. Em alguns casos, os estabelecimentos deixam suas garrafas em locais seguros, de acesso a grupo seleto de pessoas de confiança. Um outro recurso é instalar a adega no meio do salão, à vista de todos, de modo a inibir a ideia de furto. Para colecionadores particulares existem empresas que constroem cofres específicos para vinhos. Outras fornecem serviços de proteção em salas climatizadas e controladas, como a Wine Vault, em Milão, com um sistema de armários fechados com códigos. As próprias vinícolas têm criado sistemas rígidos de controle em que garrafas individuais podem ser identificadas com facilidade. Mesmo assim, é difícil reaver qualquer vinho roubado dessa forma. Há um mercado paralelo em que clientes estão dispostos a comprar rótulos raros sem fazer muitas perguntas — pagam um pouquinho menos e saem felizes da vida. O problema é servirem de destino de roubo — e o que seria delicioso vira vinagre.
Publicado em VEJA de 9 de fevereiro de 2024, edição nº 2879