A experiência de Stanley Tucci em um restaurante de Roma, durante as filmagens de ‘Conclave’
Capítulo faz parte do livro 'O que eu comi em um ano' (Intrínseca), no qual o autor intercala descrições de refeições e restaurantes com reflexões sobre a vida

Por um ano, de 2 de janeiro de 2023 até 2 de janeiro de 2024, o ator Stanley Tucci registrou em notas datadas e esparsas suas experiências culinárias e pessoais. O compilado das anotações virou o livro O que eu comi em um ano (Intrínseca), a ser lançado no início de maio, no qual o autor intercala descrições detalhadas de refeições e restaurantes com reflexões sobre a vida, família, trabalho, e até mesmo sonhos.
Tucci tem uma obsessão por boa comida e transformou essa paixão em parte de seu trabalho. Ele fez dois programas de TV, ambos centrados na cozinha italiana, um para a CNN (Stanley Tucci: Searching for Italy) e outro recente para a National Geographic (Tucci: The Heart of Italy). Também escreveu ao menos quatro livros sobre gastronomia, incluindo esta espécie de diário eventual no qual fala sobre suas experiências mediadas pelos pratos.
Em um trecho selecionado com exclusividade para VEJA, Tucci descreve um jantar em companhia de Isabella Rossellini e John Litgow, durante as filmagens de Conclave, em Roma. O grupo havia escolhido um restaurante frequentado por Ingrid Bergman, mãe de Isabella, por ser território hostil para paparazzis. Leia a seguir a entrada datada de 31 de janeiro, traduzida por José Francisco Botelho:
Isabella, John e eu fomos a um restaurante chamado L’Eau Vive, que a mãe de Isabella, Ingrid Bergman, costumava frequentar. É administrado por freiras carmelitas francesas e funciona desde 1969. Situado em um velho palazzo, há um pequeno salão de jantar no primeiro piso e um salão maior no segundo (o piano nobile), onde os fregueses se acomodam sob domos altos e recobertos de afrescos. As mesas são bastante espaçadas e cobertas por toalhas brancas. No cardápio, clássi-cos da culinária francesa: sopa de cebola, queijo de cabra assado com amêndoas, canard à l’orange, e assim por diante. Cada noite oferecem uma ou duas opções italianas, como também um prato de outro país — um aceno gastronômico às origens variadas das irmãs. A carta de vinhos, na maioria franceses, é simples e, tal qual a comida, muito acessível. Naquela noite, o salão estava repleto de romanos e turistas, além de alguns padres a uma longa mesa, todos comendo e bebendo até não poder mais.
Enquanto devorávamos a comida, Isabella nos contou que a mãe frequentava o restaurante porque era um local pouco badalado, de modo que os paparazzi jamais pensariam em ir até lá, e, mesmo que fossem, provavelmente teriam vergonha de se apresentar no espaço sagrado das freiras. Parece lógico que, em um país católico, as freiras sejam os melhores leões de chácara.
Nosso prato de entrada ia pela metade quando as freiras começa-ram a distribuir um papel com a letra de alguns hinos religiosos, todos em francês. Elas se reuniram em uma extremidade da sala, puseram-se a cantar e nos encorajaram a acompanhá-las. Foi inesperado, como-vente e lindo.
Integrar aquele grupo de desconhecidos de várias partes do mun-do, reunidos ali pela comida, erguendo a voz em melodia sob o deca-dente esplendor dos afrescos do século XVI em uma fria noite romana, causou um profundo impacto emocional em nós três. Fui criado como católico, mas jamais adquiri o vigor da fé e, portanto, jamais acreditei de fato. Embora não sinta falta de ir à missa aos domingos, recordo com nostalgia a certeza da cerimônia e a segurança da reverência. Hoje, avizinhando-me do inverno da vida, é por meio da natureza, da arte e dos meus fi lhos que sinto uma forma de reverência, e é ao redor da mesa que vivencio uma forma de cerimônia. Tudo isso sem culpa.
Não queria que a canção acabasse, mas, como todas as coisas boas, acabou porque tinha que acabar. Há conforto em saber que posso voltar lá na minha próxima visita a Roma.
