No artigo “Trump e o Ocidente”, publicado na última edição dos Cadernos de Política Exterior, do Itamaraty, o futuro chanceler Ernesto Araújo dedica palavras de simpatia às cruzadas e de antipatia à Revolução Francesa. Na Revolução Francesa o povo “queria pão, respeito e liberdade”, mas foi contemplado com “opressão, miséria e discurso ideológico, juntamente com a cabeça de Luís XVI, que ninguém pedira”. Já à “cruzada dos barões e à dos eremitas” o autor reserva lugar entre os épicos (“São Francisco com os passarinhos ao ombro, Percival e o Rei Artur, a partida das caravelas, as teses de Lutero”) que fizeram a civilização europeia, e ao francês Godofredo de Bulhão (um dos líderes da Primeira Cruzada e o primeiro titular do Reino de Jerusalém) considera um exemplo de herói que não deveria ser esquecido. O futuro ministro acredita que Donald Trump é o guardião do que vê como a maior das causas do mundo atual — a recuperação do legado histórico e cultural da civilização ocidental, a seu juízo em perigo de vida ou morte.
Ernesto Araújo é a mais audaciosa — e revolucionária — escolha, até agora, do presidente eleito Jair Bolsonaro. Seu pensamento representa uma volta de 180 graus na forma como as últimas muitas gerações aprenderam a ler o mundo. E sua crítica vai muito além das esquerdas, para atingir o Iluminismo e o liberalismo, postos no mesmo saco como agentes de uma “rejeição do passado” que se desdobra em “rejeição dos heróis, rejeição do culto religioso e rejeição da família”. O Trump de Araújo lidera uma campanha que, ao opor-se ao “globalismo”, reafirmaria a autonomia e o conteúdo simbólico das nações. Na palavra “globalismo” estariam reunidas as perversões do mundo moderno; na palavra “nação”, as virtudes que urge restaurar. “Os valores só existem dentro de uma nação, dentro de uma cultura, enraizados em uma nação, e não em uma espécie de éter multilateral abstrato.” Por fim, como ápice da equação, há que considerar Deus. As nações ocidentais “anseiam, ou deveriam ansiar”, por Deus — “o Deus que age na história, transcendente e imanente ao mesmo tempo”.
Ernesto Araújo é a mais audaciosa — e revolucionária — escolha de Bolsonaro
Pode-se objetar que a ascensão do globalismo foi resposta aos desvarios nacionalistas responsáveis por duas guerras mundiais. Ou que invocar o “Deus da história” é pôr-se em linha com o governo do Irã e com o Estado Islâmico. Concentremo-nos, porém, no que mais nos diz respeito: e o Brasil com isso? Faria sentido alinharmo-nos a uma campanha de desagravo do mundo ocidental? Uma questão prévia é indagar se o Brasil pertence ao mundo ocidental, e a resposta, da parte dos que inventaram a expressão, é não. “Mundo ocidental” limita-se, para eles, a Estados Unidos, Canadá e Europa. Quando uma revista global como The Economist fala em “the west”, é a esse conjunto que se refere; idem quando o faz um líder dos EUA ou da Inglaterra, Trump incluído. Quanto a se nós próprios nos consideramos ocidentais, é evidente que, sob o estrito ponto de vista da geografia, a resposta é sim. A questão vai, no entanto, além da geografia, e mesmo além da política, para situar-se, como quer Ernesto Araújo, nos planos civilizacional e cultural.
O futuro ministro, tão assertivo em outros pontos, aqui titubeia. “O povo brasileiro parece ser autêntica e profundamente nacionalista e, desse modo, o Brasil não teria por que sentir-se desconfortável diante de um projeto de recuperação do Ocidente a partir do sentimento nacional”, escreve. Entre o “parece ser” e o “sentir-se desconfortável” desenham-se nuvens de dúvidas. O Brasil é caudatário da cultura ocidental no sentido de que foi colonizado por país europeu e de que, nas escolas, os brasileiros se educam com base na história, na literatura e na arte europeias. Já quando se considera a população, acorda-se para a realidade gritante de que a maioria dos brasileiros é não branca e, portanto, de origem não ocidental.
No mesmo passo hesitante, o futuro chanceler arrisca que o Brasil não deveria impedir-se “de alinhar-se consigo mesmo e com a própria essência de sua nacionalidade, se chegarmos à conclusão de que essa essência é ocidental”. Saudável dúvida, ministro. Nos últimos trinta anos, de democracia e vigência da Constituição de 1988, o Brasil deu passos significativos no sentido de conhecer a si próprio. Foi um avanço cultural e civilizacional admitir-se diverso e desigual, e se há uma conclusão a tirar sobre a “essência da nacionalidade” é que não se descobriu ainda onde ela se esconde. É melhor não mexer com isso.
Publicado em VEJA de 28 de novembro de 2018, edição nº 2610