Já era esperado que o deputado Bonifácio de Andrada, do PSDB de Minas Gerais, apresentasse um relatório favorável ao arquivamento da segunda denúncia feita pela Procuradoria-Geral da República (PGR) contra o presidente Michel Temer, acusado de obstrução de Justiça e participação em organização criminosa. Só não se sabia que o parecer, lido na terça-feira 10 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, seria tão chapa-branca. Em 35 páginas, Andrada não rebateu os principais indícios elencados pela PGR para afirmar que o grupo político de Temer recebeu 587 milhões de reais em propina. Em vez disso, ele redigiu um manifesto político e defendeu a tese de que há uma campanha orquestrada para criminalizar a atividade político-partidária — tese, como se sabe, sustentada apenas por acusados, como o peemedebista Temer, o petista Lula e o tucano Aécio Neves. “A Polícia Federal, atuando à mercê do Ministério Público, compactuada com setores do Judiciário, às vezes tomando posições exageradas e mesmo exóticas, chega a ponto de fiscalizar a Presidência da República, seus ministros de Estado e outros órgãos de destaque institucional”, declarou Andrada. “Nestes autos, a Presidência não é tratada com a devida reverência que o cargo requer.”
Descendente de José Bonifácio de Andrada e Silva, conhecido como “o patriarca da Independência”, o relator sempre fez da tal reverência ao poder uma característica de sua trajetória na vida pública. Andrada militou na Arena, partido que deu sustentação ao regime militar, negou voto à emenda das Diretas Já, preferiu Paulo Maluf a Tancredo Neves no Colégio Eleitoral e votou a favor de Temer quando da primeira denúncia contra o presidente. Naquela ocasião, Temer era acusado de corrupção passiva, e contra ele pesava a notória gravação de seu assessor Rodrigo Rocha Loures, o homem da mala recheada com 500 000 reais de propina da JBS.
A denúncia de agora, relatada por Andrada, não traz prova tão contundente, mas está repleta de depoimentos de delatores e extratos bancários que apontam para a cobrança sistemática de propina em órgãos como Petrobras, Caixa Econômica Federal e Furnas. Além de Temer e Rocha Loures, são acusados de formar uma organização criminosa os ministros Eliseu Padilha (Casa Civil) e Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência) e três presidiários da Lava-Jato: o ex-ministro Geddel Vieira Lima e os ex-presidentes da Câmara Eduardo Cunha e Henrique Alves.
O prontuário criminal da turma deveria complicar a situação do presidente, mas, em vez disso, o beneficia. Com dezenas de parlamentares investigados por corrupção, a Câmara consolidou o entendimento de que é preciso estancar as punições relacionadas à Lava-Jato. Blindar Temer hoje, para a maioria dos parlamentares, significa blindar a eles mesmos. É uma questão de instinto de sobrevivência. Por isso são favas contadas que a segunda denúncia também será arquivada. Para que o plenário da Câmara autorize o Supremo Tribunal Federal a processar o presidente, são necessários os votos de 342 dos 513 deputados. Na primeira denúncia, só 227 votaram nesse sentido.
Apesar das constantes ameaças de deserção na bancada governista, o placar da segunda denúncia não deve ser muito diferente. A dúvida é sobre quando o arquivamento será sacramentado. Se depender do Palácio do Planalto, isso acontecerá ainda neste mês. Os deputados governistas, no entanto, não têm pressa e só querem salvar Temer depois de raspar o tacho, arrancando o que resta de dinheiro e cargos na máquina pública. Do PR do mensalão ao PP da Lava-Jato, todos sonham com o tilintar das moedas. Pressionado, Temer usa suas moedas como pode.
Em setembro, o governo assumiu o compromisso de liberar 1 bilhão de reais em emendas parlamentares. Às vésperas da votação da primeira denúncia, usou a mesma estratégia e prometeu liberar, em junho e julho, 4,2 bilhões de reais. O pagamento das emendas é obrigatório, mas cabe ao governo definir quando será realizado. Temer abre a torneira sempre que seu mandato está a perigo. O problema para o presidente é que os deputados agora não querem promessa, mas a efetiva liberação dos recursos.
As cenas de chantagem são explícitas. “As emendas são colocadas para fazer uma quadra poliesportiva, uma praça, uma academia de saúde. Resolvem o problema da comunidade, e a gente fica bem”, diz o líder do PR na Câmara, José Rocha (BA). “Se o governo não cumprir esses compromissos assumidos, a insatisfação não para. Tem-se causa e efeito, não é?” O loteamento da máquina pública também voltou à mesa de negociação, com o preço igualmente inflacionado.
O PTB conseguiu tirar mais um funcionário de carreira da cúpula da Casa da Moeda, órgão que comanda desde o governo do PT. O servidor em questão era contra o pagamento a uma empresa investigada por distribuir propinas, entre outros, aos próprios petebistas. O PSD reivindica cargos na Conab e na Ceagesp, ambas estatais na área de abastecimento de alimentos. Partido com o maior número de parlamentares investigados na Lava-Jato, o PP exige mais espaço no ministério. Depois de cobiçar a Integração Nacional, faz ofensiva pela Articulação Política, hoje nas mãos do tucano Antonio Imbassahy. “A articulação não funciona. O ministro Imbassahy é um zero à esquerda. Temer está fazendo cara de paisagem em relação a isso e vai pagar o preço”, afirma o líder do PP na Câmara, Arthur Lira (AL).
Temer não escapa nem das faturas do próprio partido. Os deputados peemedebistas querem o comando da Agência Nacional de Mineração, que nem sequer foi criada, e uma diretoria do Serpro, o Serviço Federal de Processamento de Dados. Vice-presidente da Câmara e coordenador da bancada mineira, o deputado Fábio Ramalho pediu 2 milhões de reais para obras em Minas. “O governo que procure uma maneira de fazer orçamento. Dinheiro é a alma. Quando se quer, arruma-se. Não tem essa de que não tem dinheiro.”
Em agosto, depois de a Câmara rejeitar a primeira denúncia, o governo anunciou a revisão da meta fiscal de 2017 e 2018, aumentando a previsão de rombo para 159 bilhões de reais. Na ocasião, a equipe econômica apresentou medidas destinadas a aumentar receitas e reduzir gastos para garantir o cumprimento da nova meta. Nove dessas medidas dependem de aval do Congresso e, até agora, não foram aprovadas. Para evitar desgaste com os deputados, Temer preferiu deixar de lado essa agenda prioritária para o país. VEJA perguntou aos ministérios da Fazenda e do Planejamento o que será feito se o pacote de ajuste não sair do papel. “Caso haja medidas não aprovadas pelo Congresso, isso será refletido na gestão orçamentária de 2018”, respondeu a assessoria da Fazenda. A resposta é propositadamente vaga. Impopular, o governo resiste a assumir em público o que trama nos bastidores: sem a aprovação das medidas de ajuste, provavelmente haverá aumento de impostos. A conta pelo arquivamento da segunda denúncia ainda está por vir.
Com reportagem de Marcela Mattos
Publicado em VEJA de 18 de outubro de 2017, edição nº 2552