Os contos de fadas nem sempre foram puros, delicados e construtivos, afeitos a fazer as crianças sonhar com a vida. A bruxa que comia uma menina de chapeuzinho vermelho a devorava mesmo, como metáfora da fome que grassava na Europa da Idade Média. Eram relatos feitos por adultos e para adultos. Foi apenas no século XVII, com a “invenção” da infância, em residências com quartos separados entre pais e filhos, com compreensão mais detalhada das faixas etárias, que surgiram as histórias infantis, adaptadas e divulgadas pelo francês Charles Perrault (1628-1703). E foram todos felizes para sempre… Não é novidade, portanto, do ponto de vista histórico, que os grandões se interessem por ouvir narrativas idílicas e oníricas, por vezes assustadoras, com uma moral lá no desfecho. O novo — e interessante — é que pais e mães voltem a procurar textos dessa linhagem, modernizados, e com um objetivo: acalmar-se.
A onda da hora: celebridades internacionais e nacionais têm emprestado a voz, invariavelmente doce e aveludada, para acalanto por meio de aplicativos. O Calm, desenvolvido nos Estados Unidos e já lançado no Brasil, chegou a mais de 100 milhões de downloads. No YouTube há dezenas de canais especializados no recurso. A fórmula é descrever ambientes e sensações. Os personagens costumam ser graciosos. Já lançaram áudios desse gênero as atrizes Kate Winslet, Eva Green e os atores Matthew McConaughey, Idris Elba e Cauã Reymond. Uma campeã nacional é a mineira Juliana Tamietti, que faz da meditação uma arte, ao postar vídeos com histórias para dormir ao menos três vezes por semana. “Recebo inúmeras mensagens de pessoas dizendo que estão menos ansiosas e de famílias que buscam os áudios para relaxar juntas”, diz ela. Os tempos atuais, mergulhados nos temores da pandemia, aceleraram o movimento de busca por paz.
Há uma explicação científica para o fato de gravações em tom monocórdio ajudarem os adultos a cair no sono. A chave é o “foco”, mecanismo cerebral que envolve, sobretudo, as emoções e a memória. Se os pensamentos estão direcionados para problemas ou atividades que precisam ser feitas no dia seguinte, o sono demora para se instalar. “Essas histórias funcionam porque permitem prestar atenção em algo totalmente diferente do que causa o stress”, explica Leonardo Ierardi Goulart, neurologista especialista em medicina do sono do Hospital Albert Einstein. As historinhas, contudo, não funcionam como tratamento para quem sofre de insônia crônica — são apenas alento para momentos de tensão. E entregam a adultos o que contos de fadas sempre fizeram com os pequenos. Como disse René Diatkine (1918-1997), um dos lendários psiquiatras infantis franceses, em entrevista a VEJA, em 1993: “Ouvindo histórias, ou lendo-as, a criança cria um espaço em sua cabeça para um mundo mágico literalmente fabuloso. Ela aprende a reagir a situações desagradáveis e a resolver seus conflitos pessoais”. Os adultos redescobriram esse fascinante caminho.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723