Pode parecer estranho, mas, sim, o transplante de fezes é uma área muito promissora da medicina. O tratamento, relativamente novo, é indicado quando pacientes têm algum desequilíbrio grave da microbiota intestinal, causado principalmente pelo uso excessivo de antibióticos ao longo da vida.
O primeiro relato desse procedimento foi feito em 1958, mas no Brasil, o transplante de fezes foi realizado pela primeira vez em 2013. De lá para cá, a técnica chegou ao SUS e tem alcançado resultados animadores, com eficácia que pode ser de 90% entre os pacientes transplantados.
Como Funciona?
Apesar do nome, não são literalmente fezes que são colocadas no paciente doente. O bolo fecal passa por um procedimento para separar as bactérias “boas” – microorganismos presentes no organismo humano que exercem papéis positivos, como ajudar na digestão, fortalecer o sistema imunológico, produzir vitaminas essenciais, competir com bactérias prejudiciais e manter o equilíbrio do microbioma.
Depois, o conteúdo pode ser injetado como pó, após passar por processo de desidratação, ou líquido, a forma mais utilizada, que precisa ser armazenada em um ultrafreezer (-80°C) para garantir sua validade por cerca de quatro meses.
Após tomar um medicamento contra a diarreia e ser sedado, o paciente recebe uma injeção do transplante de amostra fecal no cólon por meio de um tubo de colonoscopia. Ao acordar, “o remédio contra a diarreia segura as bactérias saudáveis no organismo, aumentando as chances de proliferação que auxiliam no tratamento”, explica o infectologista Felipe Tuon, responsável pelo projeto no Hospital Universitário Cajuru, em Curitiba, no Paraná – um dos hospitais que atualmente pesquisam transplante de fezes no Brasil.
Quem pode Doar?
Um dos grandes desafios do transplante de microbiota fecal é encontrar um doador, já que a sociedade brasileira ainda não possui a cultura de doar fezes e enfrenta desconfiança, falta de informação e dificuldades de compatibilidade. Para facilitar o processo, foi implementado um banco de fezes na PUCPR, em parceria com o Hospital Universitário Cajuru. No Brasil, poucos centros contam com iniciativas semelhantes, e as doações são realizadas conforme a demanda.
Para ser doador, o candidato passa por exames como hemograma, além de avaliações sobre estilo de vida, hábitos alimentares, prática de exercício físico, ausência de infecções gastrointestinais e a não utilização de antibióticos nos quatro meses que antecedem a coleta. “A triagem é extremamente rigorosa, mais exigente que um transplante de órgão. É feita uma entrevista e uma série de exames de sangue e de fezes para garantir que não ocorra nenhuma transmissão de infecções virais, bacterianas, fúngicas ou parasitárias”, detalha Tuon.
Frente Experimental
Para driblar a resistência aos medicamentos e, ao mesmo tempo, oferecer tratamento adequado, o Hospital Universitário Cajuru realiza transplantes de fezes em pacientes que sofrem de inflamação no intestino grosso, ou seja, colite por Clostridioides Difficile. Com atendimento 100% via SUS, o centro médico tem alcançado bons resultados, com melhora rápida dos pacientes e alta hospitalar.
A prática, que teve início em 2018, também ganhou uma nova frente de pesquisa para desenvolvimento de um produto à base de microbiota fecal pelo Laboratório de Doenças Infecciosas da PUCPR. “Atualmente, no mercado internacional, temos apenas dois produtos semelhantes ao nosso, um nos Estados Unidos e outro na Suíça”, relata Felipe Tuon.
O tratamento também é um aliado contra as superbactérias, que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), podem matar 10 milhões de pessoas por ano a partir de 2050. E as possibilidades de tratamento só aumentam com o avanço dos estudos. Uma pesquisa da Escola de Medicina de Harvard, nos Estados Unidos, mostrou que o transplante de fezes pode ser a chave para o tratamento de várias outras doenças, como a asma, esclerose múltipla e diabetes.
Isso ocorre porque as fezes humanas agem de forma semelhante a um alimento probiótico, com a presença de bactérias benéficas para o funcionamento do corpo humano. “A microbiota é parte importante do nosso corpo, representando até 90% de todas as células que possuímos, e é formada desde o nosso nascimento. Essa parceria entre o corpo humano e a microbiota é natural, pois ela forma a primeira linha de defesa do nosso intestino e nos auxilia a digerir melhor os alimentos que poderíamos ser incapazes de aproveitar”, explica o gastroenterologista do Hospital Universitário Cajuru, Jean Tafarel.
Falta de Regulamentação
Em 2022, locais como Reino Unido, Estados Unidos e Austrália receberam a aprovação dos órgãos reguladores de saúde locais para realizar o transplante fecal como opção oficial de tratamento contra infecções recorrentes por superbactérias. Inclusive, o Food and Drugs Administration (FDA) órgão regulador americano equivalente à Agência Nacional de Vigilância Sanitária no Brasil, a Anvisa, aprovou dois comprimidos diferentes que funcionam como transplante de microbiota via oral.
Por enquanto, a indicação do uso é para casos de bactéria Clostridium difficile. Mas há estudos em curso para avaliar se a técnica pode ser efetiva para doenças como Síndrome do Intestino Irritável e Doença de Crohn.
Já no Brasil, a técnica ainda não foi aprovada e regulamentada pela Anvisa e, por isso, não pode ser amplamente oferecida em hospitais. As universidades que oferecem o procedimento estão dentro de um protocolo de pesquisa aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa — e devem seguir as regras estipuladas no projeto autorizado.