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Dê 10 mil passos por dia e seja mais saudável: mito ou ciência?

Prática se popularizou como forma de reduzir mortalidade e doenças cardiovasculares, mas agora pesquisadores questionam se a meta é mesmo tão universal e eficaz

Por Mauro Proença*, para o Questão de Ciência
16 jul 2025, 12h00

Uma notificação incomum apareceu na tela do meu celular semana passada: “Você está menos ativo do que o normal. Faltam ainda 8 mil passos para bater sua meta diária”. Aquele foi, possivelmente, um dos primeiros dias em quase um ano e meio em que não consegui cumprir minha meta de 10 mil passos diários.

Talvez, em outra época, eu me levantasse do sofá, parasse tudo o que estava fazendo — no caso, assistindo a Homem com H na Netflix, um baita filme — e saísse para correr. Devo admitir: senti uma mistura de frustração e decepção. Afinal, atingir esse objetivo, por mais insignificante que pareça, dependia só de mim — e, pelo jeito, eu não tive força de vontade suficiente.

O caso me trouxe algumas reflexões. A primeira — e talvez a mais engraçada — é que eu nunca me perguntei por que, afinal, escolhi a meta dos 10 mil passos diários, já que nunca li nada a respeito dessa métrica como um verdadeiro indicativo de saúde. A segunda — embora não vá abordá-la neste artigo, pois pretendo tratá-la em um texto à parte — refere-se aos possíveis impactos dos monitores de atividade física e aplicativos na saúde (física e mental).

A partir disso, resolvi investigar de onde surgiu esse mito — sim, trata-se de um mito — e me surpreendi: ele não nasceu como uma crendice popular difundida ao longo do tempo, mas sim como peça de marketing.

10.000 passos diários

Pelo que pesquisei, a ideia dos 10.000 passos diários surgiu na época em que Tóquio preparava-se para sediar os Jogos Olímpicos de 1964. A sociedade japonesa começou a se conscientizar de que o exercício físico regular era uma maneira eficaz de combater doenças crônicas não transmissíveis, sendo a caminhada a forma mais acessível de atividade para a população em geral.

Diante desse cenário, a empresa Yamasa desenvolveu o primeiro contador de passos vestível do mundo: um dispositivo chamado manpo-kei (em tradução livre, “medidor de 10.000 passos”), acompanhado de uma campanha publicitária extremamente bem-sucedida.

Tratava-se de um dispositivo simples, que podia ser usado na cintura e calculava o número de passos dados, permitindo ao consumidor estimar a distância percorrida. Como o público estava preocupado com a saúde e adotava a caminhada — e, em menor grau, a corrida leve — como principal forma de exercício, o aparelho teve grande sucesso.

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A pesquisadora — uma autoridade em dispositivos vestíveis de atividade física — Catrine Tudor-Locke publicou, em 2003, o livro “Manpo-Kei: The Art and Science of Step Counting: How to Be Naturally Active and Lose Weight, no qual destacou o papel fundamental de Yoshiro Hatano, pesquisador da Universidade de Saúde e Bem-Estar de Kyushu, no Japão, que estudou por mais de 25 anos os benefícios à saúde de programas de caminhada monitorada, sendo uma figura central no desenvolvimento dos pedômetros modernos.

Como a população japonesa parecia viver uma paixão duradoura pelos exercícios físicos — especialmente pelas caminhadas e pelo uso de pedômetros —, o termo manpo-kei tornou-se o slogan de incentivo desses praticantes dedicados. Muitos clubes de caminhada surgiram, e esperava-se que seus membros atingissem a meta diária. Gradualmente, o conceito se espalhou do Japão para o restante do mundo e, como era de se esperar, passou a ser investigado por diversos pesquisadores.

Em 1993, Hatano publicou “Use of the pedometer for promoting daily walking”, estudo em que compara dois grupos de homens obesos e sedentários com diabetes tipo 2. Ambos permaneceram em um hospital e receberam dieta especial, mas apenas um dos grupos foi instruído a caminhar pelo menos 10.000 passos por dia usando um pedômetro. Esse grupo atingiu uma média de 19.200 passos por dia e, ao final do estudo, que durou de 6 a 8 semanas, perdeu em média 7,7 kg — quase 3,6 kg a mais do que o grupo controle, que apenas seguiu a dieta e teve uma média de 4.500 passos por dia.

Em um estudo — The relationship between pedometer-determined ambulatory activity and body composition variables —, Tudor-Locke observou, em uma amostra de 109 pessoas, que aquelas que caminhavam mais de 9.000 passos por dia eram mais frequentemente classificadas como de peso normal, enquanto as que davam menos de 5.000 passos por dia eram mais frequentemente classificadas como obesas.

Em minha opinião, apesar de sua origem mercadológica, o manpo-kei — ou, mais precisamente, a criação do pedômetro — foi importante por dois motivos simples: primeiro, serviu como uma ferramenta objetiva e mais precisa para quantificar atividade física. Melhor do que, simplesmente, confiar em algo como “caminhada de 10 minutos”; segundo, impulsionou inúmeros pesquisadores a investigar qual seria a quantidade de passos mais “indicada”.

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Esses achados iniciais — 19.200 passos no estudo japonês e aproximadamente 9.000, no estudo de Tudor-Locke — foram postos à prova em novas pesquisas, que geraram diversos resultados conflitantes. Algumas afirmam que a meta de 10.000 passos é eficaz para atingir os maiores níveis de saúde, enquanto outras consideram-na excessiva.

Diante de dados tão contraditórios, acredito que há três estudos, em especial, que ajudam a desembaraçar — ao menos em parte — a questão.

As evidências

A pesquisa “Daily steps and all-cause mortality: a meta-analysis of 15 international cohorts”, publicada na Lancet Public Health em 2022, é uma metanálise que teve como objetivo avaliar a associação dose-resposta entre o número de passos diários e mortalidade por todas as causas, além de investigar se essa associação varia de acordo com a idade, o sexo e a cadência dos passos.

Foram incluídos 15 estudos observacionais, todos considerados de alta qualidade. A maioria desses estudos era proveniente dos Estados Unidos (8), e um deles incluía dados de participantes de 40 países.

A amostra total foi composta por 47.471 participantes, com idade média de 65 anos, predominantemente brancos (70%), do sexo feminino (68%) e com uma média de acompanhamento de 7,1 anos.

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A mediana geral de passos ao dia foi de 6.495, sendo que adultos com menos de 60 anos apresentaram uma contagem significativamente maior (7.803 passos), em comparação com os participantes com 60 anos ou mais (5.649 passos). No total, foram registrados 3.013 óbitos ao longo do período de acompanhamento.

Ao comparar os quartis, verificou-se que o grupo com menor número de passos diários (mediana de 3.553) apresentou o maior risco de mortalidade na amostra geral. A menor razão de risco — uma medida que compara a frequência de um evento em dois grupos ao longo do tempo — foi observada na faixa de aproximadamente 7 mil a 9 mil passos por dia.

A associação entre contagem de passos e mortalidade foi mais forte nos seis estudos com menos de seis anos de acompanhamento, em comparação com os nove estudos com seis anos ou mais. Além disso, observou-se uma razão de risco significativamente menor nos estudos publicados em relação aos não publicados.

Com base nos resultados, os autores concluíram que a metanálise — composta por sete estudos publicados e oito inéditos — demonstrou que um maior número de passos por dia esteve associado a uma redução progressiva no risco de mortalidade por todas as causas. Esse risco se estabilizou, aproximadamente, entre 6 mil e 8 mil passos por dia em adultos mais velhos, e entre 8 mil e 10 mil passos em adultos mais jovens.

Além disso, os resultados sugerem que os benefícios são mais evidentes no início da atividade – quando as pessoas deixam de ser sedentárias e passam a se exercitar com regularidade.

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Naturalmente, o estudo apresenta diversas limitações. Como destacado pelos autores, os dados são derivados de estudos observacionais, o que impede o estabelecimento de relações causais — sendo possível apenas inferir correlações. Outro ponto importante é que a contagem de passos foi monitorada durante apenas uma semana e, posteriormente, utilizada como referência para todo o período de acompanhamento. Isso desconsidera possíveis mudanças no nível de atividade física ao longo do tempo.

Além disso, todos os estudos incluídos foram realizados em países de alta renda, com participantes predominantemente brancos e voluntários, o que limita a generalização dos achados. Por fim, fatores como o tipo de dispositivo, sua localização no corpo, a velocidade e a duração da caminhada podem afetar a precisão da contagem de passos — com variações superiores a 20% entre diferentes métodos de aferição.

Corroborando esses achados, foi publicado na revista Sports Medicine o artigo “Daily Step Count and All-Cause Mortality: A Dose-Response Meta-analysis of Prospective Cohort Studies”, uma revisão sistemática com metanálise de dose-resposta que analisou estudos de coorte prospectivos sobre a associação entre contagem diária de passos — medida por dispositivos — e o risco de mortalidade por todas as causas na população geral. Ao todo, sete estudos foram analisados, todos publicados após 2015, totalizando 28.141 participantes e 2.310 óbitos.

Três estudos foram conduzidos com adultos mais velhos (acima de 70 anos), um com mulheres com mais de 60 anos, e os três restantes com a população adulta em geral. Além disso, três estudos tiveram menos de cinco anos de acompanhamento, um durou nove anos e os demais, dez anos. Todos ajustaram as análises para o índice de massa corporal (IMC) e, com exceção de dois, todos também controlaram para tabagismo, consumo de álcool e presença de comorbidades.

Três estudos foram classificados como de alta qualidade, enquanto os demais foram considerados de qualidade moderada. A metanálise dose-resposta indicou uma associação inversa robusta entre o número de passos por dia e o risco de mortalidade por todas as causas, sendo observada uma redução de 56% no risco de morte ao se atingir 10 mil passos diários, e de 66% ao se chegar a 16 mil passos, em comparação a uma linha de base de 2.700 passos por dia.

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Níveis inferiores à meta amplamente divulgada de 10.000 passos por dia já estão associados a uma redução do risco. Por exemplo, a partir de 4.000 passos por dia houve uma redução de 16% na mortalidade para a população geral; 23% para 6.000 passos; 48% para 8.000 passos.

A pesquisa apresenta diversas limitações. A principal delas é que os dados derivam de estudos observacionais, o que impede a inferência de causalidade. Também é importante destacar que um menor número de passos diários — utilizado como base para as comparações de risco — pode refletir, na verdade, um pior estado de saúde e maior presença de comorbidades, configurando uma causalidade reversa que pode superestimar os efeitos observados.

O estudo de 2023

Foi publicado no Journal of the American College of Cardiology o estudo “Relationship of Daily Step Counts to All-Cause Mortality and Cardiovascular Events”. Trata-se, mais uma vez, de uma revisão sistemática com metanálise que examinou a associação dose-resposta entre a contagem diária de passos, mortalidade por todas as causas e incidência de doenças cardiovasculares (DCV) na população geral.

A análise de dose-resposta foi realizada para contagem de passos e para a cadência, sendo esta última definida pelo pico de 30 minutos, ou seja, a maior quantidade de passos realizada em um período de 30 minutos. A busca sistemática identificou 5.414 estudos potenciais, porém, após exclusão de duplicatas, análise de títulos e resumos e aplicação dos critérios de elegibilidade, foram incluídos apenas 12 estudos.

No total, 11 estudos avaliaram a associação entre contagem de passos e mortalidade por todas as causas (111.309 participantes), quatro estudos investigaram a relação entre contagem de passos e incidência de DCV (85.261 participantes), e quatro estudos avaliaram a associação entre cadência dos passos e mortalidade por todas as causas (102.191 participantes).

Entre os 111.309 indivíduos avaliados, 4.854 (4,4%) morreram durante um período de seguimento mediano de 77,8 meses. Contagens intermediárias de passos, com mediana de 6.000 passos por dia, foram associadas a uma redução significativa de 36% no risco de mortalidade em comparação ao grupo com menor número de passos, cuja mediana foi de 3.166 passos por dia. A maior redução no risco de mortalidade por todas as causas foi observada no grupo com mediana de 10.000 passos diários, queda de 50%.

No que se refere a eventos cardiovasculares, 1.224 indivíduos (1,4%) apresentaram esses problemas durante um acompanhamento mediano de 72,9 meses. As categorias de contagem intermediária (mediana de 5.737 passos por dia) e alta (mediana de 11.000 passos por dia) foram associadas a menor risco, em comparação à categoria de baixa contagem (mediana de 2.022 passos por dia), com reduções de 42% e 58%, respectivamente.

As análises de dose-resposta revelaram tendências não lineares nas associações entre a contagem diária de passos e a mortalidade por todas as causas, bem como com eventos cardiovasculares. Reduções estatisticamente significativas no risco de mortalidade por todas as causas foram observadas a partir de 2.517 passos por dia (queda de 8%), enquanto para doenças cardiovasculares essa redução significava foi detectada a partir de 2.735 passos por dia (11%).

Aumentos adicionais na contagem de passos continuaram a se associar a menor risco de mortalidade até 8.763 passos por dia (redução de 60%) e de DCV até 7.126 passos por dia (51%). Contudo, incrementos além desses valores não resultaram em reduções estatisticamente significativas adicionais no risco.

Resultados semelhantes foram observados ao considerar apenas estudos de alta qualidade. Não foram encontradas diferenças significativas nas reduções de risco entre homens e mulheres. Análise relativa ao local de fixação do dispositivo demonstrou que acelerômetros posicionados no quadril estavam associados a reduções de risco de mortalidade mais pronunciadas do que acelerômetros de pulso e pedômetros.

Novamente, há limitações. Não é possível afirmar conexão de causa e efeito entre as associações encontradas. Além disso, os dados de contagem diária de passos foram coletados apenas no início dos estudos, não sendo possível afirmar que esse nível de atividade física se manteve constante ao longo do tempo. Os resultados não podem ser diretamente extrapolados para populações com doenças crônicas, idosos ou indivíduos de baixa renda.

Apesar da fragilidade das evidências, temos um cenário relativamente claro: aumentar a quantidade de passos diários, o que equivale a engajar-se em uma atividade física leve ou moderada, associa-se a redução do risco de mortalidade por todas as causas e por doenças cardiovasculares.

Isso não significa que seja necessário ficar obcecado — como eu, em alguns momentos — em bater a meta de 10.000 passos diários; qualquer grau de atividade física, desde que entre 6 mil e 8 mil passos diários, sinaliza benefícios para a saúde.

No entanto, acredito que a mensagem principal de todo esse artigo — e que foi destacada na conclusão do estudo de 2023 — é que todo passo importa. Caminhar cerca de 2.600 a 2.700 passos já ajuda pessoas até então sedentárias. Esse é um começo, que, como todo começo, pode ser difícil, desafiador e até incômodo. Contudo, com o passar do tempo, essa quantidade tende a se tornar relativamente fácil de alcançar, o que pode motivar o indivíduo a aumentar gradativamente o número diário de passos ou até mesmo a se engajar em outras atividades físicas. Esse seria o melhor desfecho possível para a promoção da saúde.

Mauro Proença é nutricionista

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