“Não consigo estirar-me na cama, embrutecer-me novamente: impossível a adaptação aos lençóis e às coisas moles que enchem o colchão e os travesseiros”, diz o sujeito desperto em meio a uma noite perturbada por devaneios e questionamentos no conto Insônia, do livro homônimo do escritor Graciliano Ramos (1892-1953). Quem compartilha com o personagem a saga madrugada adentro sabe que o distúrbio, ao impedir as pessoas de pegar no sono ou mantê-lo, tem ares de tortura. Não bastasse, ainda desencadeia uma série de prejuízos físicos e mentais, que vão de doenças cardiovasculares a déficit de atenção e memória. Não surpreende, assim, que os insones busquem métodos de diferentes naturezas para adormecer rapidamente ou parar de acordar durante a madrugada. Vale tudo: chá, remédio, hormônio… Mas a pergunta que faz qualquer um arregalar os olhos é: o que realmente funciona?
Para dar respostas e nortear caminhos para a detecção e o controle do quadro, um mal cuja incidência piorou com a pandemia e já afeta até 30% da população, especialistas brasileiros apresentaram o novo Consenso de Diagnóstico e Tratamento da Insônia em Adultos, documento que elenca as soluções mais eficientes com base em provas científicas. Apresentado na mais recente edição do Congresso Mundial do Sono, no Rio de Janeiro, ele traz as diretrizes mineradas por profissionais que se debruçaram em quase 25 000 estudos. A partir deles, selecionaram os artigos que trazem à luz as melhores abordagens ao problema, considerado crônico quando se repete cerca de três vezes por semana por pelo menos três meses. Do tratado vem a confirmação de que a terapia cognitivo-comportamental (TCC), psicoterapia que pretende mudar padrões de pensamento e comportamento, é o padrão-ouro para o tratamento da insônia e pode dar resultados inclusive na modalidade on-line. Na esfera dos medicamentos, são bem-vindas, quando o médico considerar necessárias, as classes dos agonistas de benzodiazepínicos, como o famoso Zolpidem, e dos antagonistas da orexina (suvorexanto, lemborexanto e daridorexanto) — tudo sob supervisão e acompanhamento.
O trabalho recém-publicado vem ao encontro do crescimento no número de pacientes nos consultórios, situação agravada pelas repercussões da crise da Covid-19, que, além das noites em claro, estimularam rotinas menos regradas com o home office, uso desmedido de telas e casos de ansiedade e depressão. A piora no padrão de sono, algo crítico para a saúde em geral, demanda intervenções mais eficazes, seguras e precisas de acordo com o tipo de insônia e o perfil do paciente. Perceber que algo não vai bem e procurar ajuda são o primeiro passo para impedir que o distúrbio deite raízes e fique mais difícil de controlar.
Tão relevante quanto buscar o apoio especializado é fugir do festival de alternativas vendidas como antídotos para a insônia. O novo consenso nacional se esmera em apontar o que não funciona ou carece de base científica atualmente e, com frequência, é aconselhado como tratamento. No rol das soluções não recomendadas pelos experts constam acupuntura e aromaterapia. Já práticas como massagem e meditação entraram na lista do que precisa ser mais estudado. Os medicamentos antipsicóticos e anticonvulsivantes tampouco são indicados para essa finalidade. E é útil saber disso, haja vista que boa parte das pessoas costuma apelar para medidas e remédios (mesmo controlados) sugeridos por amigos ou familiares. O perigo, aqui, é que a autoprescrição pode ser uma via para a dependência.
No capítulo do que também é contraindicado pela falta de evidências estão produtos extremamente populares, como fitoterápicos (caso de camomila e passiflora), Cannabis e melatonina, vulgo “hormônio do sono”. “Ela entrou no país como suplemento alimentar, então a fiscalização e a regulação não são como as de um medicamento”, afirma a neurologista Márcia Assis, vice-presidente da Associação Brasileira do Sono e uma das autoras do consenso. “Não temos certeza nem se as formulações são exatas.”
As diretrizes brasileiras também definiram novos critérios para o diagnóstico da insônia — e eles vão muito além da quantidade de horas dormidas. “Precisamos fazer uma análise detalhada e ver se existem doenças associadas, como dor crônica, depressão, ansiedade, condições neurológicas. A avaliação do sono de má qualidade é extensa”, diz Márcia. Esmiuçar esses detalhes conta pontos não só para se bater o martelo no caso como propor abordagens mais personalizadas. É sabido, por exemplo, que o distúrbio é mais comum em mulheres após a menopausa e idosos, e a escolha dos remédios e outras linhas de terapia precisam levar em consideração questões hormonais e contraindicações.
Não há dúvida: a dificuldade para dormir bem está ganhando contornos epidêmicos. A cidade de São Paulo, de acordo com profissionais do Instituto do Sono, registrou um aumento de 5% na prevalência de insônia associada à apneia obstrutiva do sono, quando a respiração é interrompida várias vezes durante o repouso. O estudo calculou que 45% dos moradores da capital paulista têm insônia, e a apneia, cujo sinal mais sonoro são os roncos, atinge 33%. “A associação entre os dois quadros é algo novo para a ciência, mas é de esperar que potencializem as consequências para a saúde”, diz a biomédica Monica Andersen, diretora da instituição.
A preocupação com as repercussões da privação de sono, deliberada ou não, para a qualidade de vida está cada vez mais cristalizada nos guidelines médicos. No ano passado, a Associação Americana do Coração (AHA, na sigla em inglês) atualizou suas métricas para a preservação da saúde do coração e do cérebro, o Life’s Essential, e incluiu o sono na lista de medidas decisivas, ao lado de alimentação balanceada e exercícios físicos. Isso porque a cascata de danos da insônia vai da irritabilidade à depressão, do ganho de peso ao maior risco de infarto, da desatenção à possibilidade de acidentes. É realmente grave. O consenso desmancha a utopia de uma fórmula tiro e queda para pregar os olhos e revitaliza as regras básicas da higiene do sono — criar rotina, apagar as luzes, reduzir os sons e evitar telas à noite… — para quem quer se deitar e acordar no dia seguinte disposto. Do contrário, as madrugadas continuarão sendo perturbadoras.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2023, edição nº 2866