De aparência que lembra vagamente uma batata e de cheiro forte, as trufas são um dos ingredientes mais raros, desejados e caros (o quilo pode chegar a 15 000 reais) da gastronomia. Ao contrário dos cogumelos, seus parentes que se desenvolvem sobre a terra, as trufas crescem nas raízes subterrâneas de certas árvores de clima temperado, como o carvalho e a aveleira, e são localizadas por cães treinados em uma cuidadosa “caçada” acompanhada todo ano, com ar de suspense, no outono da Itália e da França, seus muito invejados produtores. Eis que de repente, não mais que de repente, o fungo se faz presente no Brasil, primeiro no Rio Grande do Sul e, mais recentemente, em São Paulo — menor e menos cheiroso, mas trufa mesmo assim.
A descoberta paulista é fruto direto da pandemia: Rodrigo Veraldi, que é agrônomo e chef, plantou e cultivou carvalhos em seu sítio em São Bento do Sapucaí, no clima frio e úmido da Serra da Mantiqueira, justamente com a esperança de colher trufas. No ano passado, com seu restaurante fechado, tempo de sobra e as árvores já bem desenvolvidas, pegou uma enxada e começou a escavar cuidadosamente a área em volta das raízes. Dias depois, topou com uma bolota de 5 centímetros de comprimento e cara e cheiro do fungo — no total, amealhou 25 pequeninas trufas nacionais. “Foi uma descoberta decorrente do meu interesse, curiosidade e vontade de encontrá-las”, afirma Veraldi.
Antes dele, o biólogo gaúcho Marcelo Sulzbacher, após um ano de pesquisa, havia localizado o fungo em plantações de nogueira-pecã em Cachoeira do Sul, no Rio Grande do Sul. “Os produtores de nozes não sabiam que tinham uma preciosidade nas mãos”, diz Sulzbacher. As duas espécies encontradas no Brasil são bem diferentes entre si. A versão gaúcha, batizada de Sapucay, tem exterior mais escuro, parentesco com a espécie originária da Flórida, nos Estados Unidos, e, segundo especialistas, possui aroma adocicado. A paulista, que ganhou o nome de Bandeirantes, é branca e emite cheiro forte, mais parecido com o das trufas europeias. Nenhuma das duas replica exatamente, no entanto, o sabor das variedades mais conhecidas. “Cada país e cada solo tem uma característica aromática e isso interfere diretamente na trufa”, explica o chef Danio Braga, italiano radicado no Brasil.
Nos últimos anos, a produção do fungo expandiu-se para fora da Europa. Ele pode ser encontrado, além dos Estados Unidos, no Chile, Argentina, Uruguai, Austrália e China. Mesmo assim, seguem imbatíveis, no sabor e no valor, as trufas brancas que germinam na região de Alba, na Itália, e as negras do Périgord, na França. Elas são localizadas por cães treinados para reconhecer o cheiro e apontar o local a ser escavado — sem tentar comer e danificar o fungo, como faziam os porcos, seus caçadores originais.
Apesar de sua existência ser conhecida há milênios, só na década de 60 as trufas foram efetivamente incorporadas à alta gastronomia. “Elas ornam perfeitamente com pratos simples, em que seu aroma assume protagonismo”, explica Braga. Herdeiro de um nome que é sinônimo de hotéis e restaurantes de luxo, o paulista Rogério Fasano conta que muitas vezes trouxe a iguaria escondida na mala sempre que retornava da Itália, até ser parado na alfândega por um fiscal intrigado com o cheiro forte. “Elas vão muito bem com tartare de carne, massas e ovos”, diz Fasano. No caso da produção nacional, a versão paulista ainda é incipiente, mas a gaúcha tem colheita periódica (entre outubro e janeiro) e já chegou a alcançar 6 quilos e é vendida a um pequeno número de clientes a até 8 000 reais o quilo. Carlos Claro, da Tartuferia San Paolo, restaurante paulistano especializado no fungo, adicionou a Sapucay ao cardápio no ano passado e pretende repetir a dose. “Ela tem um perfume característico, mais frutado, que combina muito com pratos leves”, ensina o empresário , que desenvolve com Sulzbacher uma parceria para treinamento no Brasil de cães farejadores do fungo. Prova de que, confirmando Pero Vaz de Caminha, em se plantando (no caso, as árvores certas), tudo dá aqui — até trufas.
Publicado em VEJA de 28 de julho de 2021, edição nº 2748