De cor inconfundível e sabor marcante, o açafrão é uma espécie de diamante azul do mundo das especiarias: a mais rara e, de longe, a mais cara de todas. Originária (provavelmente) do Irã, até hoje o maior produtor, e usada desde sempre no Oriente, difundiu-se pelo Ocidente na época dos descobrimentos, quando um mundo novo de temperos e pigmentos invadiu e conquistou a Europa. Produzir não é fácil: aproveitam-se apenas os filamentos vermelho-alaranjados e os pistilos amarelos da flor e são necessárias 150 000 flores para obter 1 quilo do condimento miraculoso que pintará de amarelo os grãos de arroz, o frango, paellas e risotos. Um amarelo que vale mais do que ouro — na cotação atual, o grama do metal custa 60 dólares e o do açafrão, 80 dólares.
Como se já não fosse suficientemente exclusivo, o produto corre o risco de se valorizar ainda mais em consequência das secas aceleradas pelo aquecimento global, que já destruíram plantações na Índia, no Afeganistão e na Espanha, o mais respeitado produtor ocidental. “Por ser uma espécie muito exigente, que precisa de condições específicas para florir, qualquer alteração climática vai impactar negativamente a produção”, explica a bióloga Mariana Reis, professora da PUC-Rio. Pois a escassez de açafrão, além de aumentar os preços já estratosféricos, está movimentando uma indústria de falsificações com ramificações planetárias e consequências que desembocam em estreladas panelas.
A polícia espanhola anunciou recentemente a apreensão de mais de 2 toneladas de açafrão adulterado, avaliadas em 750 000 euros. A Operação Jardim investiga empresas envolvidas no comércio de gardênia, uma prima pobre que se passa pelo tesouro oriental, com margens de lucro na faixa dos 800%. No Brasil, o açafrão costuma ser confundido com cúrcuma, apelidada de açafrão-da-terra por ter cor parecida, embora seja uma raiz de sabor bem mais amargo. Há quem, no entanto, prefira abertamente a cúrcuma para obter o “efeito amarelo”. “Tem muito açafrão falsificado no mercado internacional, por isso fico com a cúrcuma, que compro fresca de um fornecedor orgânico, e com ela produzo meu próprio pó, sabendo o que estou usando”, diz Alberto Landgraf, chef do renomado restaurante carioca Oteque. “A origem do fornecedor é o aspecto mais relevante do mercado. Só compro em lugares de extrema confiança”, diz Danio Braga, que atua no grupo Fasano, onde uma das iguarias famosas é o ossobuco com risoto de açafrão.
Além de endeusado no ramo da gastronomia, o açafrão também é útil como pigmento, tem propriedades medicinais e circula com desenvoltura pelos retiros espirituais. O registro mais antigo de seu uso é em pinturas rupestres datadas de 50 000 anos, na região do atual Iraque. A flor possui comprovada ação anti-inflamatória e antioxidante, é eficiente no tratamento de doenças respiratórias e dermatológicas e, segundo pesquisas recentes, consegue frear o crescimento de algumas células cancerígenas. No Oriente Médio, o açafrão é consumido na forma de chá relaxante, para combater sintomas de depressão e ansiedade. A floração da planta que lhe dá origem é curta, de dez a vinte dias, três semanas por ano. Uma vez aberta a flor, é preciso retirar os filamentos e os pistilos imediatamente, a mão. “O mais consumido do mundo hoje em dia é o açafrão espanhol, mas acho o iraniano mais aromático”, avalia Katia Hannequim, chef e especialista em especiarias.
Embora o açafrão esteja no topo da escala de temperos escassos, outros produtos indispensáveis em culinárias diversas também atravessam um período pouco picante. Uma seca persistente desde o início do ano no norte do México está dizimando a colheita da pimenta jalapeño vermelha — e a Huy Fong Foods, da Califórnia, que consome 45 toneladas por ano em seus molhos, programa para setembro a entrega de encomendas feitas em abril. No Japão, as ondas de calor, os tufões mais intensos e as inundações estão afetando o delicado cultivo de wasabi, uma raiz que se desenvolve em terreno alagado, sob temperaturas amenas. Em Shizuoka, uma das maiores regiões produtoras, a colheita minguou 55% em uma década, péssima notícia para os restaurantes que fazem questão do wasabi de verdade — nada a ver com a pasta artificial servida em sushi bars mundo afora. Mais de cinco séculos depois de as caravelas partirem para desbravar novas rotas para o Oriente, aportarem no Novo Mundo e mudarem para sempre o gosto e a apresentação dos alimentos, o descuido com o meio ambiente vem agora ameaçar esse espetacular avanço da humanidade.
Publicado em VEJA de 6 de julho de 2022, edição nº 2796