Verdade que estes tempos difíceis estão mais para a frugalidade, a simplicidade e a volta à natureza, com a onda do veganismo em expansão. Verdade também que o ramo dos restaurantes e lanchonetes é um dos que mais têm sofrido com o abre-fecha e as restrições impostas pela Covid-19. Nada disso, porém, impediu que o chef-celebridade Gordon Ramsay inaugurasse em novembro, com muito sucesso e um tanto na contramão, no espetacular salão de comidas e bebidas da Harrods, em Londres, mais uma joia de seu império: uma hamburgueria com ingredientes da alta gastronomia e preços astronômicos. O hambúrguer mais caro, de carne wagyu e queijo pecorino trufado, custa 80 libras (630 reais). Quem achar caro demais pode optar pelo hambúrguer de lagosta e camarão, que sai por meras 42 libras (310 reais) — com fritas, há um acréscimo de 6 libras (40 reais). Aos críticos de preços de 100 a 200 vezes maior do que o de um Big Mac, Ramsay responde: “Acreditem em mim, será uma experiência como nenhuma outra”.
Com seu hambúrguer, o escocês Ramsay, dono de uma rede de mais de trinta restaurantes e apresentador de reality shows de sucesso, entra em uma seara das mais lucrativas: o setor de hambúrgueres gourmet, que no Reino Unido fatura 3,3 bilhões de libras. O principal público da categoria são pessoas de 16 a 34 anos da classe A, dispostas a pagar o que for por um mero sanduíche, desde que seja saboroso, saudável e de qualidade. “Os dissabores dos últimos meses recolocaram a boa comida no papel de um prazer que as pessoas se permitem”, afirma o chef Thiago Koch, dono da rede brasileira Bullguer.
O hambúrguer e demais sanduíches de Ramsay, e outros na mesma linha, usam e abusam do luxo nos ingredientes. As carnes, wagyu ou kobe, são provenientes de raças bovinas japonesas célebres pela extrema maciez e sabor inigualável. No Brasil, o quilo da wagyu custa 500 reais — evidentemente, é pouquíssimo usada no blend de hambúrgueres. O intenso queijo pecorino trufado, inflacionado pelo raro cogumelo, chega facilmente a 5 000 reais o quilo. “Degustar um prato desses é uma experiência, algo que se faz uma vez na vida e vira história para contar”, diz Renata Cruz, chef formada pela renomada École Lenôtre, em Paris. O hambúrguer nem é a primeira polêmica de Ramsay envolvendo comidas, digamos, simplesinhas: no restaurante Savoy Grill, também em Londres, ele serve um café da manhã composto de dois ovos, quatro fatias de bacon, uma rodela de cogumelo, uma fatia de tomate e uma linguicinha por 24 libras (200 reais).
Faz parte da brigada do hambúrguer carésimo o 777 Burger, vendido em um restaurante do cassino Bally’s, em Las Vegas, a cidade dos superlativos, por exatos 777 dólares, ou 4 400 reais (veja os ingredientes acima). Como nem só de hambúrguer vive a fast food gourmet, no Industry Kitchen, em Nova York, a pizza 24K — com queijo inglês Stilton, foie gras, caviar, trufas e folhas de ouro — custa 2 700 dólares. No Tokyo Dog, um food truck em Seattle, um cachorro-quente de 169 dólares leva salsicha alemã, queijo defumado, cebola grelhada, cogumelo maitake, carne wagyu picadinha, foie gras, raspas de trufas pretas e caviar. As asinhas de frango da rede The Ainsworth, de Nova York, são fritas em ouro líquido comestível, custam 4,50 dólares a unidade e são servidas em porções de dez, vinte ou cinquenta. “O exibicionismo gastronômico virou ferramenta de marketing”, diz Ailin Aleixo, do blog Vai Se Food, lembrando que a sensação de exclusividade de quem consome uma fast food de luxo é mais instantânea do que a de quem compra um smartphone de última geração. Também agrada por dar um ar de sofisticação a uma iguaria simples, algo com que as pessoas estão familiarizadas, o que não ocorre com o caviar, por exemplo. Dito isso, é respirar fundo, pedir um hambúrguer Gordon Ramsay e se deliciar — ainda que soe deslocado, profundamente deslocado, de nosso tempo.
Publicado em VEJA de 10 de março de 2021, edição nº 2728