Há exatos 150 anos, em 17 de fevereiro de 1874, o navio La Sofia recolheu suas velas e atracou no porto de Vitória, no Espírito Santo. A partir de uma iniciativa do empresário Pietro Tabacchi, que havia deixado a Itália e chegado ao Brasil em 1850, 388 imigrantes provenientes das regiões do Vêneto e do Trento vieram trabalhar em suas terras. Enfrentaram uma viagem longa, em condições precárias, e se instalaram na região que hoje faz parte do município capixaba de Santa Teresa. Era o início da imigração de italianos. Até 1920, cerca de 1,4 milhão de pessoas saíram da Itália e aportaram na costa brasileira.
A herança daquela turma pode ser vista nas telas de Emiliano Di Cavalcanti, na poesia de Menotti del Picchia no início do processo de industrialização e na prosódia paulistana lindamente homenageada por Adoniran Barbosa em Samba Italiano: “Ti ricordi, Gioconda / Di quella sera in Guarujá / Quando il mare te portava via”. Mas nada se compara à influência na gastronomia. Na macarronada da mamma, sim, mas sobretudo em uma unanimidade nacional: a pizza.
Os imigrantes que vieram de Nápoles foram responsáveis por introduzir a iguaria por aqui. Na terra natal, a pizza napolitana é menor, preparada em porções individuais, com a farinha “00”, a mais pura e refinada, e com menor quantidade de cobertura. A pizza paulistana, no entanto, criada nos bairros da Mooca e do Brás e que se espalhou pelo país, é diferente, fruto das condições em que viviam os trabalhadores e da disponibilidade de ingredientes. Preparavam a pizza em um formato maior, próprio para dividir com os compatriotas, com a farinha disponível, menos refinada, e faziam uma fermentação mais rápida, de cerca de quatro horas. A massa ficava mais grossa e a cobertura era farta, para garantir o sustento. Eram assadas nos fornos de padarias, muitas vezes comandadas por portugueses. Não à toa, a Portuguesa é uma homenagem aos amigos que cediam a estrutura e recebiam em dinheiro ou comida. Muitos trabalhavam o dia fora, em fábricas ou comércios, e voltavam para casa à noite. “O hábito de comer pizza à noite vem desse momento histórico”, diz o crítico gastronômico J.A. Dias Lopes, autor do livro Oriundi — Histórias e Receitas da Cozinha Ítalo-Brasileira, convidado, não por acaso, a inaugurar na semana passada as celebrações do sesquicentenário com uma palestra em Roma.
A pizza de São Paulo virou marca indelével, registro da rica contribuição dos italianos. Com o tempo, é claro, surgiram outras modalidades, desde invencionices tolas (há até uma versão de pipoca caramelizada) a produtos certificados pela Associazione Verace Pizza Napoletana, que zela pelo marco zero do sul da Itália.
A modalidade brasiliana, a de São Paulo, teve trajetória semelhante à de sua irmã nova-iorquina. Lá como cá, os imigrantes italianos que desembarcaram em Manhattan deram um jeito de revirar a pizza de modo a adaptá-la às condições e necessidades locais. E então, no avesso do formato em círculo, maior ou menor, houve uma pequena desconstrução geométrica, com as unidades vendidas em fatias. A Lombardi’s, inaugurada em 1905 no Little Italy, começou a vender pizzas inteiras por 5 centavos de dólar. Os imigrantes pobres, sem lenço, nem documento, contudo, ofereciam o que tinham no bolso. E, por valores menores, os pizzaiolos tratavam de entregar nacos menores, porque a necessidade é mãe da invenção. Hoje, o endereço virou ponto turístico, tal qual alguns restaurantes de São Paulo que ainda hoje acenam para a aventura iniciada com o paladar dos que desembarcaram do La Sofia.
A pizza é a um só tempo símbolo de um processo de transformação do Brasil e registro nostálgico dos pioneiros. Como escreveu, em divertido patois, o escritor Alexandre Ribeiro Machado (1892-1933), com o pseudônimo Juó Bananère, numa paródia do clássico Meus Oito Anos: “O chi sodades che io tegno / D’aquilo gustoso tempigno / Ch’io stava o tempo intirigno / Brincando c’oas molecada”.
Publicado em VEJA de 23 de fevereiro de 2024, edição nº 2881