O sucesso inesperado de um chef japonês na França
Um restaurante oriental recebe três estrelas do 'Michelin'. Apesar da polêmica, é sinal de que os temperos estão mudando na cozinha mais célebre do mundo
Primeiro chef a ganhar aura de celebridade ao alimentar com maestria reis e imperadores, Marie-Antoine Carême (1784-1833) fincou no século XIX as bases da culinária na França tal qual a conhecemos e a degustamos. O repertório de sabores à época inigualável logo seria servido nas bem menos aristocráticas mesas que ascenderam com a Revolução Francesa, dando-se aí início à cultura do restaurante — invenção francesa, com certeza, consagrada pela Unesco em 2010 como “patrimônio cultural intangível”. A gastronomia local permanece sólida e inspiradora, mas vive, nestes tempos globalizados, às voltas com a necessidade de abrir-se ao novo para não ficar obsoleta — ideia que já fez muito mestre-cuca estrelado tilintar os talheres em protesto. Só que isso vem mudando, ainda que lenta e gradualmente, em um movimento no qual misturas e ingredientes de outras bandas do mundo são adicionados ao caldo de tradições e técnicas francesas. À frente do fenômeno estão cozinheiros de sotaque estrangeiro, para os quais a turma mais conservadora costumava torcer o nariz. Um deles é o japonês Kei Kobayashi, 43 anos, que acaba de cravar o nome no seletíssimo panteão francês da gastronomia.
Com a cabeleira descolorida e criações como o jardim de vegetais (um salmão emoldurado por quarenta legumes e verduras), Kobayashi se tornou o primeiro japonês a receber a honraria máxima da culinária mundial — as três estrelas do guia Michelin. Antes dele, apenas outro estrangeiro, o argentino Mauro Colagreco, havia sido condecorado com a constelação, em 2018. Para se ter uma noção de quão exclusivo é o clube, só 29 casas na França e 137 no planeta alcançaram esse patamar. “Obrigado, França. Há muitos japoneses aqui, e vocês nos aceitaram”, agradeceu Kobayashi na cerimônia de premiação. Seu feito causou alvoroço no vaidoso universo das panelas. O venerado Marc Veyrat, que perdeu uma de suas três estrelinhas no ano passado e levou o Michelin aos tribunais em um episódio conhecido como Cheddargate (os inspetores do guia o acusaram de ter posto queijo cheddar no suflê; ele nega), botou o prêmio em perspectiva: “Bravo! É sensacional que gente como ele venha para a França”.
Próximo ao Museu do Louvre, em Paris, o Kei, restaurante desse cozinheiro, egresso de uma família tradicional de Tóquio e que absorveu a técnica francesa como assistente de Allan Ducasse, se junta a uma dúzia de casas japonesas festejadas por fundir com eficiência Oriente e Ocidente. Em Lyon, território do insubstituível Paul Bocuse (1926-2018), Tako Takano faturou duas estrelas ao mesclar especiarias asiáticas às receitas, enquanto Keigo Kimura, da vizinha Dijon, é apontado como “redefinidor da culinária da região” ao trazer à cena uma célebre costeleta de porco à milanesa. “As pessoas buscam hoje algo além do escargot”, diz Kimura. Essa revigoração dos cardápios mantém como pilares as normas de Carême e de outros gigantes das panelas. “A renovação atual tem como principal marca a inclusão de novos ingredientes e temperos nos pratos”, enfatiza J.A. Dias Lopes, autor de Arroz! Assim Caminha a Humanidade.
Mestres no assunto, os franceses já lideraram outras revoluções à mesa. A mais recente delas foi nos anos 1960, com o movimento nouvelle cuisine. A ideia era sacudir a sisudez e a tradição pregando mais simplicidade, o que levou à redução do tempo de cozimento de peixes, frutos do mar, aves e vegetais, em prol da preservação dos sabores originais. A decoração dos pratos passou a ser ingrediente essencial. Houve críticas de todos os lados. Sempre que a tradição francesa parece ser posta à prova, a fervura sobe. No fim da década de 90, figurões do calibre de Joël Robuchon, que elevou o purê de batata a outro patamar ao inundá-lo de manteiga, e Ducasse, um dos maiores chefs vivos, chegaram a escrever um manifesto em que denunciavam “a globalização da cozinha francesa”. “A gastronomia cosmopolita irrita os mais conservadores”, observa Enrique Rentería, autor de O Sabor Moderno: da Europa ao Rio de Janeiro na República Velha. Bocuse, o pai de todos, estufava o peito de orgulho ao declarar: “Certamente minha cozinha é antiquada”.
Foi nesse cenário meio arredio, embora agora ventilado por novos aromas, que o jovem Kobayashi espetou suas facas afiadas de fazer sushi. O caminho não foi nada fácil. Ele quase decretou falência ao abrir seu primeiro restaurante em Paris, há uma década, e já foi fuzilado pelos críticos. O influente site Atabula rotulou suas criações de “carentes de coerência e emoção”. Koyabashi conta que aperfeiçoou com os franceses o estilo implacável de gerir sua equipe. “Sou bem direto, como eles”, diz. E é com esse jeito que dispara: “Eu peço, mas a prefeitura não tira o lixo acumulado na porta do meu restaurante. Se fosse com o Alain Ducasse, seria diferente”. Também isso deve mudar. Desde janeiro, quando o trio de estrelas passou a iluminar o Kei, o telefone de lá não para de tocar.
Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675