Black Friday: Assine a partir de 1,49/semana

O sucesso inesperado de um chef japonês na França

Um restaurante oriental recebe três estrelas do 'Michelin'. Apesar da polêmica, é sinal de que os temperos estão mudando na cozinha mais célebre do mundo

Por Ernesto Neves Atualizado em 4 jun 2024, 14h47 - Publicado em 21 fev 2020, 06h00

Primeiro chef a ganhar aura de celebridade ao alimentar com maestria reis e imperadores, Marie-Antoine Carême (1784-1833) fincou no século XIX as bases da culinária na França tal qual a conhecemos e a degustamos. O repertório de sabores à época inigualável logo seria servido nas bem menos aristocráticas mesas que ascenderam com a Revolução Francesa, dando-se aí início à cultura do restaurante — invenção francesa, com certeza, consagrada pela Unesco em 2010 como “patrimônio cultural intangível”. A gastronomia local permanece sólida e inspiradora, mas vive, nestes tempos globalizados, às voltas com a necessidade de abrir-se ao novo para não ficar obsoleta — ideia que já fez muito mestre-cuca estrelado tilintar os talheres em protesto. Só que isso vem mudando, ainda que lenta e gradualmente, em um movimento no qual misturas e ingredientes de outras bandas do mundo são adicionados ao caldo de tradições e técnicas francesas. À frente do fenômeno estão cozinheiros de sotaque estrangeiro, para os quais a turma mais conservadora costumava torcer o nariz. Um deles é o japonês Kei Kobayashi, 43 anos, que acaba de cravar o nome no seletíssimo panteão francês da gastronomia.

Com a cabeleira descolorida e criações como o jardim de vegetais (um salmão emoldurado por quarenta legumes e verduras), Kobayashi se tornou o primeiro japonês a receber a honraria máxima da culinária mundial — as três estrelas do guia Michelin. Antes dele, apenas outro estrangeiro, o argentino Mauro Colagreco, havia sido condecorado com a constelação, em 2018. Para se ter uma noção de quão exclusivo é o clube, só 29 casas na França e 137 no planeta alcançaram esse patamar. “Obrigado, França. Há muitos japoneses aqui, e vocês nos aceitaram”, agradeceu Kobayashi na cerimônia de premiação. Seu feito causou alvoroço no vaidoso universo das panelas. O venerado Marc Veyrat, que perdeu uma de suas três estrelinhas no ano passado e levou o Michelin aos tribunais em um episódio conhecido como Cheddargate (os inspetores do guia o acusaram de ter posto queijo cheddar no suflê; ele nega), botou o prêmio em perspectiva: “Bravo! É sensacional que gente como ele venha para a França”.

chef-japones
O CRIADOR – Kobayashi: dobrando a resistência contra os chefs estrangeiros (Stephane de Sakutin/AFP/Getty Images)

Próximo ao Museu do Louvre, em Paris, o Kei, restaurante desse cozinheiro, egresso de uma família tradicional de Tóquio e que absorveu a técnica francesa como assistente de Allan Ducasse, se junta a uma dúzia de casas japonesas festejadas por fundir com eficiência Oriente e Ocidente. Em Lyon, território do insubstituível Paul Bocuse (1926-2018), Tako Takano faturou duas estrelas ao mesclar especiarias asiáticas às receitas, enquanto Keigo Kimura, da vizinha Dijon, é apontado como “redefinidor da culinária da região” ao trazer à cena uma célebre costeleta de porco à milanesa. “As pessoas buscam hoje algo além do escargot”, diz Kimura. Essa revigoração dos cardápios mantém como pilares as normas de Carême e de outros gigantes das panelas. “A renovação atual tem como principal marca a inclusão de novos ingredientes e temperos nos pratos”, enfatiza J.A. Dias Lopes, autor de Arroz! Assim Caminha a Humanidade.

Mestres no assunto, os franceses já lideraram outras revoluções à mesa. A mais recente delas foi nos anos 1960, com o movimento nouvelle cuisine. A ideia era sacudir a sisudez e a tradição pregando mais simplicidade, o que levou à redução do tempo de cozimento de peixes, frutos do mar, aves e vegetais, em prol da preservação dos sabores originais. A decoração dos pratos passou a ser ingrediente essencial. Houve críticas de todos os lados. Sempre que a tradição francesa parece ser posta à prova, a fervura sobe. No fim da década de 90, figurões do calibre de Joël Robuchon, que elevou o purê de batata a outro patamar ao inundá-­lo de manteiga, e Ducasse, um dos maiores chefs vivos, chegaram a escrever um manifesto em que denunciavam “a globalização da cozinha francesa”. “A gastronomia cosmopolita irrita os mais conservadores”, observa Enrique Rentería, autor de O Sabor Moderno: da Europa ao Rio de Janeiro na República Velha. Bocuse, o pai de todos, estufava o peito de orgulho ao declarar: “Certamente minha cozinha é antiquada”.

Continua após a publicidade

Foi nesse cenário meio arredio, embora agora ventilado por novos aromas, que o jovem Kobayashi espetou suas facas afiadas de fazer sushi. O caminho não foi nada fácil. Ele quase decretou falência ao abrir seu primeiro restaurante em Paris, há uma década, e já foi fuzilado pelos críticos. O influente site Atabula rotulou suas criações de “carentes de coerência e emoção”. Koyabashi conta que aperfeiçoou com os franceses o estilo implacável de gerir sua equipe. “Sou bem direto, como eles”, diz. E é com esse jeito que dispara: “Eu peço, mas a prefeitura não tira o lixo acumulado na porta do meu restaurante. Se fosse com o Alain Ducasse, seria diferente”. Também isso deve mudar. Desde janeiro, quando o trio de estrelas passou a iluminar o Kei, o telefone de lá não para de tocar.

Publicado em VEJA de 26 de fevereiro de 2020, edição nº 2675

Publicidade

Imagem do bloco

4 Colunas 2 Conteúdo para assinantes

Vejinhas Conteúdo para assinantes

Matéria exclusiva para assinantes. Faça seu login

Este usuário não possui direito de acesso neste conteúdo. Para mudar de conta, faça seu login

Black Friday

A melhor notícia da Black Friday

BLACK
FRIDAY

MELHOR
OFERTA

Digital Completo

Acesso ilimitado ao site, edições digitais e acervo de todos os títulos Abril nos apps*

a partir de 5,99/mês*

ou
BLACK
FRIDAY
Impressa + Digital
Impressa + Digital

Receba 4 Revistas no mês e tenha toda semana uma nova edição na sua casa (menos de R$10 por revista)

a partir de 39,96/mês

ou

*Acesso ilimitado ao site e edições digitais de todos os títulos Abril, ao acervo completo de Veja e Quatro Rodas e todas as edições dos últimos 7 anos de Claudia, Superinteressante, VC S/A, Você RH e Veja Saúde, incluindo edições especiais e históricas no app.
*Pagamento único anual de R$71,88, equivalente a 5,99/mês.

PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
Fechar

Não vá embora sem ler essa matéria!
Assista um anúncio e leia grátis
CLIQUE AQUI.