Quem é bom ganha reconhecimento e esta regra da meritocracia básica foi levada aos limites pelo Noma, o restaurante em Copenhague que o chef René Redzepi transformou num fenômeno cultural cujas ondas continuam a se propagar pela culinária mundial.
Cinco vezes eleito melhor restaurante do mundo, salpicado com todas as estrelas do Michelin, reverenciado e copiado como acontece com os grandes criadores – o que possibilita aos mortais menos privilegiados ter uma ideia da culinária radical lá inventada -, o Noma só vai funcionar até o fim de 2024. Virará um laboratório culinário.
“É insustentável. Financeiramente e emocionalmente”, suspirou o chef para o New York Times. Entre outros motivos, porque começou a pagar os estagiários que imploravam por um lugar no Olimpo da cozinha e depois ostentar no currículo o prestigioso “trabalhou no Noma”.
Nem que fosse numa das repetitivas e humildes atividades que os auxiliares de cozinha fazem para que brilhem pratos como o do menu degustação a 600 dólares por cabeça do Noma. Um exemplo, resumido, de um dos cardápios: creme de miolo de rena em caldo de faisão e algas servido no crânio do animal, picles de ovo de codorna, barriga de javali fermentada em alho com marmelo, sashimi de beterraba amarela e ragu de pênis de rena (a obsessão com o simpático bicho se inscreve na escola que prega o uso de ingredientes nativos, embora não existam renas na Dinamarca).
A nova culinária nórdica é uma tendência que sucedeu os grandes movimentos recentes no mundo da comida, depois da Nouvelle cuisine, que arejou a tradicional culinária francesa, e a cozinha molecular do catalão Ferran Adrià, outra explosão mundial. Às vezes literal, considerando-se as esferas que estouram na boca e as fumaças altamente sensoriais, eventualmente deturpadas pelo excesso de imitação e de esnobismo.
Sair pela floresta catando cogumelos custa caro, mas restaurantes com menu degustação a 500 ou 600 dólares, fora a bebida, são o padrão no mundo da alta culinária e dos fanáticos por comida que organizam suas férias – e seu orçamento – em torno de experiências gustativas.
E dificilmente existe experiência como a do restaurante que atualmente é o mais caro do mundo, o Sublimotion, em Ibiza.
O menu a 2 000 dólares, servido numa única mesa para doze comensais, inclui um espetáculo com painel multimídia, performances e truques de magia. “O restaurante funde gastronomia molecular com teatro e tecnologia”, resumiu a Forbes.
Não é, obviamente, um lugar onde se vai para comer bem e conversar. O chef Paco Roncero, que trabalhou no El Bulli com Adrià (viram a importância do estágio?), comanda truques como três cápsulas com líquidos que o freguês coloca numa jarra. Com os efeitos magnéticos de imãs embutidos na mesa, os líquidos se misturam sozinhos no recipiente para produzir um Bloody Mary.
O chef como celebridade, sumo sacerdote ou, na escola do Noma, um mago de comportamento monacal, é um fenômeno cultural relativamente recente. Segundo o New York Times, os estagiários do Noma eram proibidos de dar risada. Trabalhavam sem receber até 16 horas por dia e enfrentavam pauleiras como depenar patos na área externa, a temperaturas congelantes.
O trabalho duro, com chefes tirânicos, é uma tradição que remonta à origem militar das grandes cozinhas. Ter orgulho de aguentar o tranco faz parte do ethos dessa tribo.
George Orwell escreveu um pequeno livro, menos conhecido do que fábulas visionárias como 1984 e a Revolução dos Bichos, intitulado Na Pior em Paris e Londres, retratando sua experiência da total falta de dinheiro nas duas cidades e do trabalho em restaurantes, em posições humildes como plongeur, o profissional encarregado de lavar pratos em pias ou bacias com água (“Um escravo”).
Um trecho: “Nunca sinta pena de um garçom. Às vezes, quando você está sentado num restaurante, ainda se entupindo meia hora depois do fechamento, você pode achar que o garçom cansado a seu lado deve certamente desprezá-lo”.
“Mas ele está pensando: ‘Um dia, quando tiver economizado o suficiente, vou ser igual a esse homem’. Ele está propiciando um tipo de prazer que entende e admira. É por isso que os garçons raramente são socialistas, não têm sindicatos que possam ser chamados de tal e trabalham doze, quinze horas por dia, sete dias por semana”.
“São esnobes e acham que a natureza servil de seu trabalho é muito natural”.
Não existe nada de servil no trabalho de chefs (nem de garçons), mas o esnobismo é evidente em cozinhas que nunca são grandes demais para os egos que abrigam.
O retorno material através da publicidade também pode ser espetacular, apesar dos custos altos, e a mudança de ramo abre novas perspectivas. O Noma 3.0, como diz Redzepi, vai desenvolver pratos e produtos para vender online.
Quem sabe um dia possamos experimentar a tal rena, em partes à escolha do freguês?