Comemos com os olhos, diz o milenar aforismo. A visão tem o poder de provocar atração ou repulsa, reprimindo os demais sentidos. Crianças consumiriam mais verduras se elas fossem multicoloridas, e menos hambúrgueres se não fossem processados industrialmente. Aversões se impõem sobre a comida principalmente porque a maioria pode ver o que está no prato antes de colocar na boca. É por isso que existem aqueles que acreditam que algumas experiências precisam ser vividas às escuras — entre elas, participar de jantares imersos nas trevas e também no silêncio.
O conceito de jantar às cegas teria surgido em pontos alternativos de Paris no fim do século passado, mas o primeiro restaurante a fincar raízes foi o Blindekuh, em Zurique, na Suíça. Inaugurado em 1999 por um clérigo cego que buscava promover a inclusão de deficientes visuais, o Blindekuh prosperou e inspirou versões similares. A rede mais conhecida hoje é a Dans Le Noir, presente em cinco países da Europa, na Nova Zelândia e no Egito. O conceito não fez muito sucesso quando chegou a Nova York, mas, no Brasil, vai conquistando adeptos.
Em São Paulo, a chef Mariana Pelozio faz dois jantares por mês. No momento da reserva, os interessados precisam informar se têm alergia ou restrição a algum alimento. Passada essa etapa, a aventura sensorial começa. Ao adentrar o restaurante Duas Terezas, do qual Mariana é proprietária, o cliente é vendado e lhe é servida uma sequência de pratos, harmonizados com vinho se ele desejar. A todos os presentes é pedido que evitem comentar sobre o que estão comendo a fim de não atrapalhar os outros. Segundo Mariana, quem participa relata reminiscências da infância e descobre sabores que foram perdidos no tempo. “No final, quando revelamos o cardápio ao cliente, ele percebe que errou o conteúdo de quase tudo que consumiu”, explica a chef.
No Rio de Janeiro, a italiana Silvia Di Capucci promove festins similares, os quais ela chama de Jantar dos Sentidos, que não ocorrem em lugar fixo e podem ser feitos até mesmo em casa, para onde ela leva a experiência. Silvia é uma estudiosa do tema e, assim como a colega de São Paulo, busca criar um ambiente acolhedor para que as pessoas se deem conta até do tilintar de talheres. “A visão define a comida. Sem ela, o cérebro precisa se recondicionar”, diz a chef. Conforme relatado, alguns clientes chegam a se emocionar, pois a jornada na escuridão parece reconectá-los ao mundo, por meio da audição, do tato, do aroma e, principalmente, do paladar.
Publicado em VEJA de 22 de setembro de 2021, edição nº 2756